Ação performática: a política revolucionária entre a depressão e o êxtase
Por Clarisse Gurgel
Militante, professora do departamento
de Estudos Políticos da UNIRIO e membro do Círculo de Estudos da Ideia e
da Ideologia – CEII , Clarisse Gurgel aponta, a partir do conceito de
ação performática, para um sintoma na esquerda que tem origem na crise
da forma partido.
LavraPalavra: Poderia nos esclarecer rapidamente o significado do conceito de ação performática?
Clarisse Gurguel: O conceito de ação performática
é um termo forjado para ilustrar uma tendência que temos observado nos
partidos revolucionários de priorizar a realização de eventos como
manifestações e protestos em detrimento de trabalhos mais metódicos e
continuados, tais como os de organização de núcleos por locais de
trabalho e de moradia, em que se recupere o papel de combatividade dos
sindicatos e de instrumentos como as associações de moradores, por
exemplo. O termo performance se deve a este tipo de ação: efêmera, pouco
ensaiada, concentrada no tempo presente e exposta de forma histriônica,
extraordinária, como recurso de simulação de radicalidade. A ação performática,
portanto, é uma tática de visibilidade compensatória em face da
ausência de enraizamento real de sujeitos coletivos nas suas bases
sociais. Assim, é uma simulação de acirramento de ânimos, de
radicalização e de força, quando representa seu oposto, o resultado da
burocratização das organizações de esquerda, da ausência desses sujeitos
coletivos no cotidiano da classe trabalhadora. Sob o disfarce de ação
direta e espontânea, por trás de um discurso de rejeição de métodos
tradicionais das organizações partidárias, revela-se um processo de
produção de ações esporádicas, com preparações centralizadas,
burocratizadas, e que não representam de fato nem a adesão da classe
trabalhadora, nem mesmo a unidade das bandeiras e reivindicações desta
classe. Ocorre algumas vezes de as próprias bases sociais se rebelarem
contra as simulações de suas direções, como ocorreu nas greves das
universidades federais do Brasil, em 2012, e tal como se apresentou na
greve dos professores municipais do Rio de Janeiro, em 2014. Isto
porque, do recurso à ação performática, derivam-se mais outros
problemas. Tais problemas podem ser causa ou consequência. Resumir a
ação revolucionária à preparação de calendários de atos e marchas passa
por uma certa indisposição e descrença dos partidos de sua real
capacidade de diálogo e de organização. Muitas vezes, julgam suas bases
mesquinhas e resumidas a interesses imediatos, incapazes de pensar para
além do bolso. Esta espécie de crença serve aos partidos como fantasia
ideológica para reivindicarem pautas recuadas, resultados tangíveis, tal
como Lênin nomeava, e, assim, poderem alardear vitórias. Até mesmo as
derrotas são comemoradas como vitórias. Mas tudo isso vem atualizado em
um contexto que nos convoca a novos desafios, pois estamos diante de um
momento histórico de expectativas decrescentes, em que o passado perdeu o
caráter de obra histórica e o futuro parece nada mais prometer que não
catástrofes. Diante disto, o tempo efêmero do presente, como pura
vivência, serve de instante que resta para uma sensação de ansiedade sem
projeto. Assim, na condição de tática preferencial da esquerda, os atos
e protestos de rua servem, em grande medida, como este expurgo, como
esta sensação de que algo, ao menos, está sendo feito, como uma espécie
de recurso de evasão nirvânica.
LavraPalavra: Então o conceito de ação performática se articula com alguma perspectiva do tempo histórico?
Clarisse Gurgel:
Diríamos que sim. Mas considerando que, por ser histórico, este tempo se
insere na luta e o que nos cabe é verificar nossa capacidade de
disputá-lo. Há uma perda do valor da experiência e de uma perspectiva de
construção pro futuro, que serve de atmosfera à ação performática.
Neste sentido, estamos falando de questões relacionadas ao papel do
passado e do futuro. De uma sensação de que pouca coisa está sendo
construída, que as coisas não têm duração e que a vida é um mosaico de
tarefas efêmeras, desconectadas umas das outras, fazendo dos
trabalhadores meros autômatos. Mesmo o tempo-espaço mais duradouro –
aquele em que se experimenta no deslocamento da casa para o trabalho e
do trabalho pra casa – é um tempo que não comporta um estado e sim uma
transição. Neste sentido é que é possível concebermos trabalhadores que
adoecem em quadros híbridos, pois estão deprimidos e hiperativos, em um
contexto de ansiedade em que pouco se espera, onde se anseia sem
esperança. Esta temporalidade comporta as operações de mercado que
precisam ser mais céleres, de menor investimento e maior ganho. É o
caminho que serve ao Capital para solucionar aquilo que Marx chamou de
tendência decrescente da taxa de lucro, em que se faz necessária a
redução do tempo de circulação e a criação de subempregos apenas como
viabilizadores de um mercado consumidor. Os partidos da esquerda parecem
não conseguir escapar desta temporalidade do Estado e do Capital e
procuram “otimizar” sua militância, por via de atos efêmeros com algum
potencial de visibilidade. Assim, a tática é entrar nas pautas
midiáticas e, deste modo, exercer pressão sobre o patronato ou sobre o
Estado, cujas instâncias, de tão impermeáveis, cada vez mais só são
minimamente desestabilizadas quando envolvidas em escândalos que a
própria burguesia queira expor. Tudo isto, portanto, desde que os grupos
conservadores estejam, eles próprios, em disputa entre si. É preciso,
pois, a produção de um outro tempo, no qual a esquerda não seja apenas
este coadjuvante ensimesmado. Neste sentido é necessário reposicionar
este sujeito da ação.
Há um princípio que me apropriarei de
Badiou: o evento quem nomeia é o ator e não o espectador. Por isto
defendo o partido como uma espécie de narrador, na esteira do que Lênin
sugeria, ao defendê-lo como a tribuna do povo. Convocados a criar um
novo tempo no aqui-e-agora, em alternativa à ação performática,
e permanecendo no âmbito de uma apropriação de novos tempo-espaços,
outros gêneros do próprio teatro podem nos servir de parâmetros, seja
para reposicionar o tempo, seja para re-situar o ator, em uma dinâmica
mais estruturada e menos auto-idêntica. Entendendo o partido como um
narrador imanente, poderíamos propor uma temporalidade tal como a de um
teatro épico, em que o narrador não exprime o próprio estado de alma,
mas os de outros seres, participando, porém, do destino destes, sempre
presente através do ato de narrar. Sua narrativa, ademais, é de uma obra
de vasta extensão e sempre dialética porque aquele que conta sempre
conta para alguém. Isto não dispensa, porém, aspectos do gênero
dramático, que, embora apresente o mundo como autônomo ao sujeito,
emancipado de formas de mediação, apoiado na identidade catártica de um
encadeamento causal que inebria o espectador, possui as rubricas como
mediadoras e grandes antagonismos como motor. Ainda que impedido de
retornar ao passado por sua atualidade rigorosamente encadeada, o drama
se apresenta repetidas vezes pela primeira vez. E aqui estamos diante
das três unidades clássicas que nos ajudam a pensar o partido: ação,
tempo e espaço a ressignificarem o sujeito, ou melhor, estabelecendo
novos marcos na relação sujeito-objeto ou sujeito-mundo. No teatro,
hoje, tem sido comum a ação assumir feições de investigação
auto-referente, onde expôr tem como único referente a auto-exposição
fragmentada das performances individuais, sem texto, sem estrutura, tal
como happenings. A política cai na mesma armadilha, ao se resumir a
eventos efêmeros, sem desdobramentos orientadores e sem algo que os
anteceda como a servir de ensaios. O fantasma do stalinismo tem grande
papel neste drama, pois muito do que se tem de recurso mais estruturador
da ação política como algo que a estenda no tempo e no espaço é
utilizado de forma tímida, pelo temor da associação com a rigidez
fantasmagórica do burocratismo stalinista. A presença que se estabiliza
através de uma organização e que é compelida a manter sua vitalidade
precisa ainda elaborar melhor sobre seu passado. Só assim sairá de uma
permanente defensiva, tal como uma esquerda constrangida.
Roberto Schwarz, em seu estudo em torno
da peça de Brecht, A Santa Joana dos Matadouros, aponta para a
insuficiência da explicação pelo “acidente stalinista” do desencontro
histórico entre um experimentalismo de vanguarda e o socialismo. Em suas
palavras “o problema já vinha de antes”. O mesmo é necessário dizer
acerca das explicações para os rumos da revolução russa pelo
“burocratismo stalinista” ou pela “ditadura do partido no período de
Stalin” ou pela “traição de Stalin e invejas de Zinoviev”. O problema já
vinha de antes. É preciso que verifiquemos com maior atenção o que era
isto que antes já vinha. Caso contrário, restará a dramática
impossibilidade de retornar a um passado que é, inevitavelmente, parte
de nossa obra histórica.
LavraPalavra: Mas
como aproximar essa categoria de evento de Badiou à crítica de uma
tática que prioriza os “eventos”, ou seja, a ação performática?
Clarisse Gurgel: Talvez
devêssemos partir da polêmica que se estabelece em torno do conceito
entre Badiou e autores como Antônio Negri, por exemplo. Nos termos de
Negri, o evento parece melhor atender ao anseio do que chamamos de
evasão nirvânica. O próprio Negri serve de evasão, de uma espécie de
consolo, ao sugerir potencial subjetivo nos obstáculos objetivos
impostos pelo capital. Isto porque o autor, com sua aversão pós-moderna à
uma tal restrição da forma, encanta-se inebriado com o papel que o
avanço produtivo engendra na passagem da subsunção formal para a
subsunção real. Como se, ao sair do formal para o real, estivéssemos
diante da liberdade autônoma de uma vida imediata, despida de
influências externas e mediadoras. Nossa crítica é à centralidade do
evento, nos termos em que Negri o entende, como conformação da política
ao paradigma da resistência apoiada nas experiências de movimentos
antiglobalização, por exemplo. Há outras noções de evento. Em Badiou,
evento está associado a um procedimento, ao modo como habitar uma
situação extraordinária, não por representar um instante de existência
inigualável do sujeito, mas por convocá-lo a nomeá-lo, inscrevê-lo na
história. Algo que centra atenção no processo de fidelidade a um
acontecimento, aquilo que lhe imprime continuidade.
Mas aí poderíamos resumir nos seguintes
termos: para Negri, o evento é o ponto de chegada, para Badiou, é o
ponto de partida. Acho que esta simplificação poderia mais atrapalhar
que ajudar. Porque poderíamos incorrer no erro de crer que a noção de
evento como resultado associa-se à ideia de acúmulo de forças, tal como
um ação como excesso. Entretanto, para Negri, aquilo que forja o sujeito
revolucionário é um processo aleatório de lutas, pautadas por grupos de
identidades, rompendo com uma noção de organização formal, como um
partido, que ele entende ser uma organização madura e completa – na
esteira do equívoco de supor que falar de “forma subjetiva” é falar de
um modelo de maturação. Por outro lado, a noção de evento, tal como
aparece em Badiou, como ponto de partida, em que sua verdade é medida
por sua duração, produz inquietações também acerca do papel de elementos
relevantes para a política revolucionária como programa ou
planejamento, dado que aqui o evento aparece como exceção. Este dilema
entre ação como excesso ou como exceção encosta na falsa polarização
entre ação espontânea e ação organizada, aquela que tem servido de
esteio, muitas vezes, para a própria rejeição à forma partido. Tal
debate, cuja relevância está naquilo que Lênin distinguiu entre
tática-plano e tática-processo, ignora que a tarefa de organização
requer plano e processo. No sentido de que os elementos de disciplina e
organização partidários não são fatores que impõem necessariamente a
precedência da organização, como receita, à ação espontânea, admitindo-a
como fagulhas potencialmente constituidoras. O próprio Badiou sinaliza
para a importância dos seres estarem expostos ao evento, organizados de
modo a antecipar as surpresas, de tal maneira que possamos entender este
evento, ainda que extraordinário e desconhecido, como um presente que é
lastro de um passado que escoa, através dos sujeitos, para o futuro.
Esta exposição com a qual o sujeito se apresenta não deixa de
corresponder à consequência inevitável de seu pertencimento no movimento
da história, mesmo, portanto, que seja impelido à incorporar um evento,
cuja sequência concreta se deu como começo, como ruptura. O sujeito
está convocado a algo, a uma operação, que já inseriu o singular no
universal, no simbólico da história, pois é assim que os indivíduos
fundam suas relações com o mundo. Assim, podemos compreender a
articulação e a relação de co-produção entre aquilo que rompe e aquilo
que possui duração. Lênin assim também entendia, quando alertava para a
necessidade de renovação das forças partidárias, através da luta, da
efervescência das massas, das tais fagulhas, manifestadas em publicações
ilegais, na greve nacional dos ferroviários, de outubro de 1917, nas
166 manifestações das jornadas de julho, que levaram o povo para o lado
dos bolcheviques, nas ocupações de latifúndios pelos camponeses, que
destruíam e queimavam mansões de latifundiários, confiscando estoques de
grãos e que aceleravam a insurreição.
Assim, é possível articularmos
temporalidades distintas que estendem a ação na duração e garantam a ela
um potencial disruptivo, em um hibridismo de gêneros, ao ponto de
compreendermos até mesmo o papel do lirismo na política, aquele em que o
mundo é subjetivado em momentos eternos, tal como se fez na Comuna de
Paris, no dia 6 de abril, quando o 137º Batalhão da Guarda Nacional
trouxe para as ruas a guilhotina e a queimou, em meio ao entusiasmo
popular.
LavraPalavra: Que
tipo de lutas ou quais metodologias poderiam ser usadas para que a
esquerda tome consciência do jogo performático em que esta metida e se
liberte deste circuito?
Clarisse Gurgel: É de
fato um circuito. E só o que interrompe um circuito é um curto-circuito,
a junção de coisas, em princípio, disjuntas. Neste sentido, sigo
permeando o tema da temporalidade. Há um desafio enorme em concebermos
um partido que, em tempos de flexibilização das relações sociais e de
trabalho e de extrema efemeridade nas trocas e nas experiências, consiga
produzir uma temporalidade oposta. Isto só é possível através de uma
organicidade do sujeito coletivo, razão pela qual acredito no papel do
militante profissional, pois ele é quem mais pode fazer esta junção:
vai, pelo tempo de seu trabalho, produzir um outro tempo no partido.
Como diz nosso amigo Zizek, só um corpo orgânico pode se
auto-diferenciar. E a esquerda precisa se auto-diferenciar do todo.
Aqui, a noção de auto-diferenciação é interessante, pois é algo que
preserva diferenciação em seu próprio interior. É possível você falar em
algo que apresenta contradições em seu interior – algo que poderia
sugerir um certo grau de inconsistência da coisa – sem que isto sirva de
pretexto para que seu resultado seja trivial, para que se possa
nomeá-lo ao bel prazer de cada um. A trivialidade é opção para aqueles
que não concebem a unidade na multiplicidade, que não concebem a
possibilidade da unidade na contradição. A esquerda precisa dar dois
passos atrás e perceber que seu esforço agora é o de conceber tais
coisas. Isto implica em tratarmos do tema da identidade partidária nos
termos hegelianos: de identidade como relação. Esta noção para o partido
o impele a dispor de seus espaços, de seu tempo e dos meios que estão
disponíveis para o exercício difícil de mediação imanente, em que não só
o conteúdo de certos termos condenados seja compartilhado e discutido
entre seus filiados – centralismo democrático, disciplina partidária -,
mas um programa e um projeto de sociedade sejam elaborados. Lênin sempre
chamou atenção para a necessidade de atentarmos para o contexto
histórico, quando impelidos a pensar a forma do partido. Não sem razão
defendia em 1902, o que um pensador contemporâneo, Lars Lih, tem chamado
de Erfurtianismo, em referencia a um modelo partidário vitorioso em
face da repressão anti-socialista de Bismarck, na Alemanha de 1891. Era o
modelo entendido por Lênin como o viável e a ser construído por um
longo período, para combater a autocracia russa, um contexto de ausência
extrema de liberdades políticas básicas. Na mesma direção, é preciso
que se pense, com urgência, qual é o partido que queremos e qual é
aquele exigido para nossa época. Os casos de golpes, expurgos,
manipulações entre militantes, até pertencentes ao mesmo partido,
precisam ser tratados com seriedade. Em alguns casos, a facilidade com
que se expulsa um filiado é a mesma com que se filia. Este é um ponto no
tema da metodologia. Casos emblemáticos, hoje, são aqueles que envolvem
tensões, por exemplo, entre religião e política no interior de certos
partidos. Hoje, o Brasil tem um proletariado amplamente interpelado
pelas igrejas evangélicas, que, aliás, fazem um trabalho brilhante de
organização de base, atividades recreativas, publicação de jornais,
panfletagens de massa, jornadas de juventude, cursos e grupos de estudo.
Rituais, encontros, grupos, que não se justificam por identidades
propriamente, mas por uma necessidade de manter o costume dos encontros.
Tais igrejas chegam a cumprir o papel do Estado, prestando serviços à
comunidade, envolvendo-a em trabalhos de assistências social e até de
mediador com o tráfico de drogas. Algo que nos lembra os alertas de
Gramsci para a necessidade de forjarmos, já, na ordem social burguesa,
as instituições que cumpririam o esforço de produzir costumes
proletários, não como uma experiência de “dualidade de poder”, por
exemplo, mas como sistematização prévia de uma nova forma de organização
social encarregada a nós de construirmos. São formas de produção de
hábitos que servem de sinais de que há um vazio por ser nomeado e que
alguns o representam na figura de Deus, não só como aquele que lhe cria
esperança, mas aquele que o adverte sobre o mal. Dois aspectos que
apontam, de algum modo, para o futuro. Para uma vida pra além do tempo
presente. Mal ou bem, a experiência das ocupações, em 2015, nas escolas
em São Paulo foi um ensaio do que estou tratando aqui, pois os
manifestantes fizeram as vezes do Estado, mas as vezes do avesso.
O que me encoraja a afirmar que
devemos extrair algo de positivo na tendência anacrônica da religião,
em especial de vertente evangélica no Brasil, é o fato de que precisamos
ser justamente esta “falta contra a cronologia” que o anacronismo
possui – e que bandeiras como o comunismo também possuem -, pois é
aquilo que consegue ser novo e necessário fora de seu tempo. Um partido
revolucionário que acredita que a religião é o ópio do povo e acolhe um
evangélico entre seus quadros está diante de um ser que reivindica duas
verdades, pois, tal como Marx sugeriu, a religião e o comunismo são,
ambas, formas de felicidades, são corações em um mundo sem coração. Isto
passa por lidar com duas sentenças verdadeiras – o comunismo e a
religião como felicidades. Ainda que não reste dúvida, desde já, de que o
comunismo como felicidade carregue nele mesmo uma disjunção radical com
nosso próprio tempo, o tempo do capital. Mas, de todo modo, comunismo e
religião são dois termos disjuntos que se juntam, em um curto-circuito,
quando o desafio é a proletarização do partido, no Brasil. Foi um
brasileiro, o filósofo Newton Costa, um dos primeiros a apontar para a
possibilidade de dois termos que se negam não se excluírem como
verdades. Disto se derivou uma série de pesquisas alternativas à lógica
clássica que auxiliam até em processos decisórios, quando se está diante
de dados que se contradizem. Curiosamente, o mesmo Newton Costa, ao
questionar a dois alemães se sua tese tinha diálogo com o hegelianismo,
deparou-se com duas sentenças distintas, uma que negava e outra que
afirmava. O filósofo, estranhamente, abdicou da hipótese, diante de duas
sentenças que poderiam ser verdadeiras sem se excluírem. Talvez, para
um filósofo que não apreciava as trivialidades do vulgo, tal como se
pode observar em algumas de suas entrevistas, o mundano tenha-lhe tirado
o chão e lhe produzido um curto-circuito. Dirigirmos nossa escuta para o
que os trabalhadores têm manifestado como interesse e como tábua de
salvação – a religião e o gosto pelos grandes épicos religiosos
traduzidos em telenovelas, por exemplo – nos produzirá, sem dúvida,
curto-circuitos semelhantes. Mas são esses os mesmos trabalhadores,
cuja necessidade e precariedade os obrigam à sabedoria revolucionária de
resolver coletivamente seus problemas, que terão muito a nos ensinar.
Este é um dado concreto da vida na favela, por exemplo, que serve de
elemento para que se rompa com o ideário do empreendedorismo – aquele
que defende soluções individuais para problemas individuais, tal como o
próprio presbiterianismo – e para que se compreenda que o caráter
coletivo não está só nas soluções, mas nos próprios problemas dos
trabalhadores, no capitalismo. É como dizia Lênin: a vida ensina. O
partido precisa de vida partidária para apresentar uma alternativa de
felicidade, buscando com minúcia aquela motivação que permite a junção
de coisas, em princípio, disjuntas, como um evangélico em um partido
comunista, e aquela que faz com que o trabalhador busque a igreja, por
exemplo, e nem cogite filiar-se a um partido.
LavraPalavra: Em seu
texto, você estabelece uma ligação entre a ação performática e o que
chama de patologia partidária, ou seja, o desvio da forma partido de
suas funções revolucionárias. Como você vê esta patologia em relação às
lutas contemporâneas identitárias e por reconhecimento?
Clarisse Gurgel: Chamo
de patologia este fenômeno em que os partidos rejeitam sua própria
forma. Esta adesão manifesta-se, dentre outras maneiras, na priorização
da tática da ação performática, como tentativa de escapar da
imagem associada ao stalinismo. Algo que repercute em uma espécie de
crise subjetiva, tendo em vista que, nos marcos da ação performática,
os partidos convertem a luta contra-hegemônica em luta por
reconhecimento, deslocando sua crise ideológica para uma crise de
identidade. Isto não só pelo caráter de suas bandeiras e pautas –
centradas nas lutas por direito de expressão de sexualidade, de gênero,
de raça… – mas por sua tática e estratégia serem sintetizadas no desejo
por reconhecimento de sua própria identidade e de seu direito de
expressão revolucionária. Tal como se estivéssemos diante de uma
dinâmica funcionalista, nos marcos do que Zizek chamou de “oposição
complementar”, em que a esquerda reivindica uma cota de participação nos
espaços de audiência. Parafraseando Oscar Wilde, o mais corajoso dos
partidos tem medo de si próprio. É duro apontar isto, mas este caráter
performático da esquerda possui estreita relação com a maneira como os
partidos socialistas e comunistas se nomeiam quando estão diante dos
inquisidores, que, não tenho dúvida, são muitos, mas muitos deles estão
no seu interior. No Brasil, nós temos partidos que se apresentam,
algumas vezes, como movimento, outros que se reivindicam “partido de
partidos”, aqueles que preservam o “desenvolvimento das singularidades”,
outros que, em um êxtase constante diante de “situações
revolucionárias”, alimentam o fetiche na clandestinidade e no
centralismo. Estes últimos esquecem-se de que a tal situação
revolucionária envolve a fragilidade do capital, de um lado, e a força
dos socialistas, do outro. O caráter defensivo que marcou a esquerda
pós-Stalinista a constrange em ações esporádicas, sem sustentação em
suas bases sociais, com filiações instáveis e inorgânicas. Os problemas
que minaram o PT, por exemplo, estão na origem de novos partidos
socialistas que contam muito mais com filiados-simpatizantes e que se
pautam por calendários eleitorais. O próprio referencial no trabalho
como critério para filiação se perdeu. Uma pessoa pode se filiar a um
partido socialista sem assumir qualquer compromisso com o partido. Na
tentativa de romper com os estigmas da burocratização, muitos partidos
atuam timidamente e crêem que basta um calendário de atos e marchas para
adquirem legitimidade combativa e uma vitalidade que os afastem do
fantasma de Stalin. Mas, tal como nos alerta Lacan: “o que não é
reconhecido faz irrupção na consciência sob a forma de visto”. Situada
entre o reconhecido e o visto, entre o antes e o depois característico
do tempo performático, a esquerda encara envergonhada esta experiência
especial de seu Déja-Vu. Querendo arrancar-lhe, corre atrás do próprio
rabo, pois ela – como ninguém – não pode ser sem seu passado. Isto
porque toda espécie de percebido comporta necessariamente uma referência
a um percebido anterior. E é deste lugar de onde se é visto que se
trata o campo simbólico. Ao contrário de se supor que a visibilidade
pode se resumir, com êxito, ao campo do imaginário. Uma pendência
urgente da esquerda é, pois, sua reconciliação com seu passado, com seu
campo simbólico. Algo que inclui os seus fracassos. Este é o limite que o
próprio trotskismo parece apresentar, dado seu caráter pouco
propositivo e muitas vezes defensivo com a forma partido.
Com todo o respeito aos
companheiros trotskistas, a situação atual nos faz lembrar debates
antigos, entre junho e junho de 1905, em que Lênin dedica-se a criticar
as táticas defendidas por Trotski, na Conferência da parte menchevique
do Partido Operário Social-Democrata da Rússia, que se assemelhavam,
guardadas as devidas proporções – inclusive quanto ao caráter de
estágios a que se propunham e que hoje nem isto possui -, àquilo que
Lênin chamou de “teoria da insurreição processo” ou de
“organização-processo”. Algo que se materializava na tendência dos
mencheviques a perceber o processo de organização política como uma
sucessão linear de atos e bandeiras. Sejam em partidos-movimentos, sejam
em partidos-comitê central, este fenômeno parece ser preponderante. A ação performática
foi a forma como tentamos sintetizar esta tática, em que uma
radicalidade é simulada por meio de ações, em sua aparência, dispostas a
gestos de desobediência e de afronta aos valores estabelecidos, mas que
têm, porém, seus limites impostos pelos próprios atores, não por senso
de disciplina coletiva, mas por uma estratégia de ser aceito nas pautas
midiáticas. Sem prejuízo de um debate mais aprofundado sobre as reais
condições de liberdade política no Brasil e no mundo, o que vemos é que,
se para Lênin, nos países onde havia liberdade política, a diferença
entre a organização sindical e a organização política era perfeitamente
clara, esta lógica não se confirma hoje. Lênin, diante da autocracia
russa, apontava para a confusão, por parte dos membros do partido, entre
sindicalismo e luta revolucionária. Aqui, partidos revolucionários
abdicam do debate sobre os desafios da tomada do aparelho do Estado,
assumindo preponderantemente tarefas de negociações entre patrões e
empregados, e os sindicatos atuam como seitas, como se fossem organismos
autopoiéticos, tratando como inimigos de classe trabalhadores de sua
categoria que não se enquadram perfeitamente no clube sindical de um
dado grupo de “revolucionários”. Temos partidos hoje cujo
sentimento-de-si é o da soma de suas particularidades e/ou de mera
universalidade formal, em que alguma unidade é conhecida para além de
suas particularidades. Entretanto, seja no primeiro caso, em que
estaríamos diante de uma possível força sem forma, seja no segundo caso,
em que uma mínima repetição, um mínimo hábito e cotidiano permitem que o
partido fale em seu nome – e até mesmo fale de si como aquele capaz de
dar um “fora a todos” – o que testemunhamos de fato são partidos como
formas sem força. Isto muito se deve à própria ideia mecânica de
unidade, como algo plenamente consistente, despido de contradições.
LavraPalavra: Como você lida com a relação entre psicanálise e marxismo em sua tese?
Clarisse Gurgel: Acho
interessante contar como surgiu esta união. Tenho uma certa fissura – e o
termo é curioso, pois remete a uma tentação à repetição, ao mesmo tempo
que é sinônimo de corte – por telejornal, principalmente por aqueles
que são veiculados por canais dedicados exclusivamente a noticiário.
Espiar vez ou outra ou ouvir de fundo aquelas notícias, repetidas vezes,
estruturava, de certa forma, em uma espécie de amalgama, minha rotina.
Era o que me conectava com o resto da cidade. Poucas coisas naqueles
noticiários mudavam. A pauta restrita que se repetia era o diapasão dos
meus dias e algo que me proporcionava um estranho bem estar. Meu
encontro com a psicanálise se deu aí. De um jeito bobo e vulgar. Na
percepção orgânica de que há em nós uma “necessidade” de repetição e que
isto estava associado a um meio de organização do tempo, do espaço e de
nós mesmos. Depois, fui entender que a repetição envolvia pulsões em
diálogo com uma demanda nossa de sentido. Era evidente que a esquerda
era destituída de recursos de repetição capazes de produzir esse efeito
estruturante do dia. Ou faziam uso de seus recursos nos marcos do
“trabalho amador” – em referência a Lênin -, de forma vacilante,
subestimando o potencial de combatividade de suas bases. Esta
constatação nos colocava diante de, no mínimo, dois desafios. Aqueles
que envolviam recurso e repetição: seus potencial estruturante e
disruptivo e seus riscos, tais como o da famosa burocratização. Mais
desafiador, portanto, seria conceber uma repetição que soubesse produzir
o novo do mesmo. Sabia que os militantes não dispunham de tantos
recursos, mas, ainda assim, repetiam de alguma forma seu modo de agir.
Estávamos, desde já, cientes do potencial da repetição. Razão pela qual
já perseguíamos uma ideia que passava pela articulação entre hábito e
espontaneidade. Estas duas palavras aparecem em uma mesma sentença de
Lênin, em Estado e Revolução. Justo quando ele está tratando do processo
pelo qual o Estado se extingue. Portanto, a noção de repetição passível
de ser associada a algo que fosse capaz de produção de uma espécie de
impulso disruptivo, para que fosse entendida como algo que preservasse a
dimensão de uma disciplina coletiva, implicava em algo distinto de um
puro hábito e que implicasse em algum modo de universalização
constituidora. Razão pela qual nossa hipótese de um partido que possa
repetir, produzir hábito, passa por uma percepção de seu papel também
como aquele que faz as vezes de Estado, de um Estado sui generis.
A articulação entre a psicanálise e
política se estreitou, ainda mais, a partir destas impressões, contando
com Hegel como aquele que me ajudaria a não cair em conversões
grosseiras ou precipitadas. As distinções que Hegel faz acerca da
repetição na dinâmica de produção de hábito, entre hábito como segunda
natureza, aquilo que lhe proporciona “sentimento de si”, e hábito ético,
por exemplo, são caminhos que alimentam hoje algumas hipóteses novas em
desenvolvimento. E se este é nosso caminho para algo mais propositivo,
nosso diagnóstico apontava para um tipo de repetição na esquerda em
direção oposta, mais como expressão de uma relação dúbia, de uma tensão,
com seu próprio campo simbólico. Isto, que possuía até um potencial de
“relação negativa consigo mesma” poderia significar um tensionamento, na
perspectiva de uma pulsão de morte, em que a negatividade expressasse o
tal “ferrão de recusa”, nos termos em que Zizek sugere. Assim, talvez,
estivéssemos talvez em um melhor caminho, de uma repetição produtora de
uma unidade contraditória, em que o partido se forjasse na luta de
classe e no enfrentamento, fraterno, amplo e coletivo, de questões
internas pendentes. Entretanto, o que víamos era o contrário, a esquerda
repetia uma forma de ação apoiada em representações, apoiadas, não no
desenvolvimento do pensamento, mas no sentimento imediato e na
imaginação contingente dos eventos, em uma forma especial de repetição
que buscava audição em um outro que lhe era adverso.
LavraPalavra: A ação performática?
Clarisse Gurgel: Sim.
Foi o nome que atribuí a um tipo de repetição que possuía
características que nos lembravam uma repetição identificada no set
psicanalítico: o Acting Out. Uma atuação que serve como representação de
um recalque, um trauma que ainda não foi simbolizado e que o Outro, no
caso o analista, recusou-se a ouvir. No Acting Out, o ator procura se
desimplicar da atuação, busca imprimir um caráter espontâneo ao ato, de
tal modo que o Outro o subjetive, de maneira que aquela ação sirva como
recurso de subjetivação, de determinação daquele sujeito por via do
Outro. Sou muito grata ao encontro de interesses que houve entre mim e o
psicanalista Gabriel Tupinambá, pois, em certa medida, a disposição que
teve o colega de percorrer comigo o trajeto que eu propunha, de
articulação entre a psicanálise e o estudo da ação revolucionária, foi o
que me permitiu estabelecer este paralelo, entre ação performática
e Acting Out. Entretanto, sentia que havia algo neste mesmo paralelo
que não se encaixava e que passava pela relação especial que a esquerda
estabelecia com este Outro, com aquele que servia de endereço da ação.
Ao mesmo tempo em que os partidos faziam
uso de uma tática de visibilidade dirigida à mídia de massa, combatia as
grandes corporações midiáticas, negava sua presença nos atos,
denunciava seus passados e seus propósitos. Ao mesmo tempo em que
adotava ações que faziam parte do universo tradicional da esquerda –
como deflagrações de greve, realização de assembleias – esvaziavam-nas
de conteúdo efetivo, fazendo uso de tais recursos de uma maneira
iconográfica, instrumental e tímida. Neste instante da investigação
teórica, eu testemunhava, por exemplo, mais uma greve nacional, como as
dos professores federais, em que a “greve” era uma espécie de signo
atualmente referente. Quando se pensa em greve, pensa-se em algo que
suspende o tempo, interrompe o curso de alguma atividade. Esta suspensão
e sua indeterminação são os fatores que servem de recurso de pressão.
Mas, no modo de sua condução, na realidade concreta, aquela greve já
começava com sua data de término tacitamente e até verbalmente
anunciada: o dia da aprovação do orçamento da União. A adesão ao
movimento dava-se, muitas vezes, graças à promessa, do comando de greve a
suas bases, de que se tratava de uma paralisação breve. Este é um caso
perfeito de ação performática, em que o significante é adotado
apenas como insígnia, um ícone, em um uso imaginário do significante.
“Greve” ou “ato de radicalização”, neste caso, são imagens meramente
ilustrativas, não importando as condições em que se materializam,
servindo apenas como legendas, aquilo que permite à esquerda um
“sentir-se-a-si-mesmo-fazendo”.
Mas, aí, nestes termos, a ação performática
parecia mais uma Passagem ao Ato, outro tipo de repetição identificado
na psicanálise, que, em seus marcos, é radicalmente distinta de um
Acting Out. Sendo Passagem ao Ato, estaríamos tratando de uma ação que
serve como substitutiva do pensamento, como se fosse uma descarga
motora, sem endereço. Seriam processos primários de resolução de
angústia. Este tipo de atuação aparece comumente como algo não
reivindicado pelo autor, mas sim como algo por ele sofrido ou a ele
forçado. A Passagem ao Ato está muito associada por algumas escolas de
psicanálise a um diagnóstico de época, por elas denominadas “Império das
Imagens”, em que o campo da linguagem como mediação universal perde
eficácia, por um possível esgotamento das grandes narrativas, das
ideologias e das instituições tradicionais, que não ofereceriam mais o
que chamamos de centro de gravidade para as identificações simbólicas.
Consistiria em trazer para o âmbito da relação com outros imediatos – e
não mediados pela cultura – a dinâmica de um gozo. Esta seria, aliás, a
semelhança entre um gozo no corpo através de quadros como bulimia e
anorexia, ou de gestos como aplicação de piercings e feitura de
tatuagens com a ação performática, em que a satisfação está no
ato em si. Todas essas formas de atuação se apoiam na satisfação
imediata do ato, no corpo, e em um papel inflacionado das imagens.
LavraPalavra: Então a ação performática chega a um impasse conceitual entre um Acting Out e uma Passagem ao Ato?
Clarisse Gurgel: Pois é.
Estava diante de duas hipóteses que pareciam verdadeiras, mas que se
anulavam, no campo da psicanálise. Porque, nos marcos do “Império das
Imagens”, nosso conceito apontaria para a inexistência de um Grande
Outro, nos marcos de um Acting Out, apontaria para sua existência – a
mídia de massa, o stalinismo, o negrianismo, o revolucionarismo. Foi
quando, em uma espécie de convescote entre mim, Gabriel e sua mãe, a
grande pensadora Clara Tupinambá, entendemos que a confusão se dava pelo
fato de os partidos, os atores, serem, ao mesmo tempo, aqueles que
extraviavam a mensagem inscrita na ação – não tinham ou perdiam o
endereço – e aqueles que eram extraviados, pois negavam suas próprias
insígnias, utilizadas apenas como signos. Estávamos diante de um sujeito
que endereçava suas demandas a um Outro assumido de soslaio e que
sofria no próprio corpo as consequências de uma perda de assunção
simbólica. Aquilo que aponta para um sintoma que pode ter potencial de
metaforizar o partido em sujeito e objeto. Algo a ser investigado. De
todo jeito, ao operar os conceitos para situarmos os atos e protestos no
seio da crise da forma partido, entendemos que ali estávamos diante de
uma hipótese: de que o partido revolucionário, que é convocado a
extrapolar a democracia representativa, teria perdido de vista, ao mesmo
tempo, sua tarefa de apresentar as demandas da classe trabalhadora, de
instigar sua produção e de produzir um novo lugar, uma nova cultura a
endereça-las. Assim, arriscamos afirmar que a tese do Império das
Imagens, ao qual associam a Passagem ao Ato, seria, ao menos na
política, mais um giro estratégico do sujeito do que propriamente um
diagnóstico de época. Hipótese que acaba, de sobra, por produzir
consequências, talvez, para o próprio campo da psicanálise e para a
própria clínica, dado que a hipótese do gozo no corpo não apontaria,
necessariamente, para um declínio da função paterna, mas para um recurso
tático desse sujeito que anseia sem esperança.
LavraPalavra: O
divisionismo e o sectarismo no interior da esquerda também aparecem como
uma profunda causa de angústia, principalmente nas bases menos
orgânicas dos partidos políticos. Suas investigações permitem alguma
hipótese sobre esse fenômeno?
Clarisse Gurguel: Parece
que sectarismo é justamente o nome desta confusão entre Acting Out e
Passagem ao Ato. É o que cabe a uma esquerda que faz uso de seu
vocabulário como mera imagem ilustrativa e que, em uma busca egológica
em perseverar na existência, mutila-se, em ações com fim em si mesmas,
esvaziadas de conteúdo, em que os outros são encarados como intrusos e o
Grande Outro – o stalinismo, a burocratização, o partido, a grande
mídia – é denegado, como objetos causa do desejo e como abjetos. A
simulação de assembleias como espaços verdadeiros de debates, em que
militantes fazem uso de informes para exaurir os adversários e
expulsá-los dos plenários, a realização de greves com datas de
validades, as aparições esporádicas dos militantes apenas em momentos
eleitorais de aparelhos sindicais revelam esta esquerda como sujeito e
objeto deste contexto de perda de eficácia do campo da linguagem como
mediação. Algo que situa a esquerda como algo à mercê e a serviço de uma
força centrífuga, condenando-se a uma forma que rejeita sua própria
forma e que fraciona-se em pequenos arremedos de unidades supostamente
auto-idênticas, em correntes, amarradas em uma espécie de conatus
mesquinho. É preciso entender que, hoje, dotados dos meios de
comunicação que temos, uma das tarefas é a de recuperação de relações
mais face-a-face, mais dialógicas. Neste sentido é que falo do partido
como mediador-imanente. Aqueles que rejeitam qualquer forma de mediação,
reivindicando as redes virtuais, são justamente aqueles que centram
esperanças apenas nos meios que, cada vez mais, “iconogravam a
linguagem”, abdicando de uma luta bem mais trabalhosa que é de
alargamento do tempo e do espaço para debates longos, em que polêmicas e
diferenças são realmente enfrentadas com ternura e amadurecidas por
senso de responsabilidade. Só assim, a esquerda sairá de sua posição de
somente poder compartilhar o que não quer – uma esquerda
anti-capitalista – para se tornar uma esquerda capaz de dizer o que
quer, capaz de oferecer um convite a uma senda para um mundo mais feliz.
Mas, na contramão disto, avançam nos meios sindicais, por exemplo,
práticas que abolem assembleias gerais e que resumem o processo
decisório da política a votações em urnas itinerantes. São espaços e
concepções que perdemos para setores conservadores, em grande medida
pelas práticas que adotamos. O que a esquerda perdeu entre si foi
justamente aquilo que Marx apontou como o desencaixe da tríade
reivindicada pelos burgueses revolucionários. Sem fraternidade, a
igualdade e liberdade são plenamente subsumidas na dinâmica capitalista.
Talvez isto explique a separação que alguns da esquerda concebem entre
socialismo e liberdade. Falta fraternidade entre nós. E é esta
fraternidade entre os militantes que nos permitirá a retomada de debates
mais consequentes, a produção de hábitos como ensaios e a elaboração de
um programa que nos oriente. Isto porque o que estamos propondo é que
pensemos uma ferramenta que produza novos hábitos na esquerda e a partir
da esquerda. Algo que passa pela produção de uma vida partidária, de
criação de núcleos ativos, em locais de trabalho e de moradia, de
realização de encontros e debates longos, de articulação e reativação de
associações de moradores, de panfletagens amplas e constantes, de
visitas a unidades para círculos de bate-papo. É pela ausência de vida
partidária que se tornam comuns episódios de intolerância e
autoritarismo no interior dos partidos da esquerda, mesmo, ou talvez
principalmente, naqueles que mais reivindicam a pluralidade. A ideia de
produção de um hábito que resulte em produção de uma outra temporalidade
não diz respeito apenas à tarefa de formação política com uma dinâmica
que torne os princípios revolucionários cada vez mais espontâneos para
os trabalhadores. Trata-se de uma tarefa, além disto, de formação dos
próprios militantes já filiados que, pelo desafio que proponho, é
convocado a ensaiar tarefas de sustentação de instituições que terão
como metas futuras sua extinção ou sua profunda transformação. Este é um
grande desafio tal como se provou na experiência soviética.
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