quarta-feira, 29 de março de 2017

TR - 29/03/2017

Ação performática: a política revolucionária entre a depressão e o êxtase


Por Clarisse Gurgel
Militante, professora do departamento de Estudos Políticos da UNIRIO e membro do Círculo de Estudos da Ideia e da Ideologia – CEII , Clarisse Gurgel aponta, a partir do conceito de ação performática, para um sintoma na esquerda que tem origem na crise da forma partido.





LavraPalavra: Poderia nos esclarecer rapidamente o significado do conceito de ação performática?

Clarisse Gurguel: O conceito de ação performática é um termo forjado para ilustrar uma tendência que temos observado nos partidos revolucionários de priorizar a realização de eventos como manifestações e protestos em detrimento de trabalhos mais metódicos e continuados, tais como os de organização de núcleos por locais de trabalho e de moradia, em que se recupere o papel de combatividade dos sindicatos e de instrumentos como as associações de moradores, por exemplo. O termo performance se deve a este tipo de ação: efêmera, pouco ensaiada, concentrada no tempo presente e exposta de forma histriônica, extraordinária, como recurso de simulação de radicalidade. A ação performática, portanto, é uma tática de visibilidade compensatória em face da ausência de enraizamento real de sujeitos coletivos nas suas bases sociais. Assim, é uma simulação de acirramento de ânimos, de radicalização e de força, quando representa seu oposto, o resultado da burocratização das organizações de esquerda, da ausência desses sujeitos coletivos no cotidiano da classe trabalhadora. Sob o disfarce de ação direta e espontânea, por trás de um discurso de rejeição de métodos tradicionais das organizações partidárias, revela-se um processo de produção de ações esporádicas, com preparações centralizadas, burocratizadas, e que não representam de fato nem a adesão da classe trabalhadora, nem mesmo a unidade das bandeiras e reivindicações desta classe. Ocorre algumas vezes de as próprias bases sociais se rebelarem contra as simulações de suas direções, como ocorreu nas greves das universidades federais do Brasil, em 2012, e tal como se apresentou na greve dos professores municipais do Rio de  Janeiro, em 2014. Isto porque, do recurso à ação performática, derivam-se mais outros problemas. Tais problemas podem ser causa ou consequência. Resumir a ação revolucionária à preparação de calendários de atos e marchas passa por uma certa indisposição e descrença dos partidos de sua real capacidade de diálogo e de organização. Muitas vezes, julgam suas bases mesquinhas e resumidas a interesses imediatos, incapazes de pensar para além do bolso. Esta espécie de crença serve aos partidos como fantasia ideológica para reivindicarem pautas recuadas, resultados tangíveis, tal como Lênin nomeava, e, assim, poderem alardear vitórias. Até mesmo as derrotas são comemoradas como vitórias. Mas tudo isso vem atualizado em um contexto que nos convoca a novos desafios, pois estamos diante de um momento histórico de expectativas decrescentes, em que o passado perdeu o caráter de obra histórica e o futuro parece nada mais prometer que não catástrofes. Diante disto, o tempo efêmero do presente, como pura vivência, serve de instante que resta para uma sensação de ansiedade sem projeto. Assim, na condição de tática preferencial da esquerda, os atos e protestos de rua servem, em grande medida, como este expurgo, como esta sensação de que algo, ao menos, está sendo feito, como uma espécie de recurso de evasão nirvânica.



LavraPalavra: Então o conceito de ação performática se articula com alguma perspectiva do tempo histórico?

Clarisse Gurgel: Diríamos que sim. Mas considerando que, por ser histórico, este tempo se insere na luta e o que nos cabe é verificar nossa capacidade de disputá-lo. Há uma perda do valor da experiência e de uma perspectiva de construção pro futuro, que serve de atmosfera à ação performática. Neste sentido, estamos falando de questões relacionadas ao papel do passado e do futuro. De uma sensação de que pouca coisa está sendo construída, que as coisas não têm duração e que a vida é um mosaico de tarefas efêmeras, desconectadas umas das outras, fazendo dos trabalhadores meros autômatos. Mesmo o tempo-espaço mais duradouro – aquele em que se experimenta no deslocamento da casa para o trabalho e do trabalho pra casa – é um tempo que não comporta um estado e sim uma transição. Neste sentido é que é possível concebermos trabalhadores que adoecem em quadros híbridos, pois estão deprimidos e hiperativos, em um contexto de ansiedade em que pouco se espera, onde se anseia sem esperança. Esta temporalidade comporta as operações de mercado que precisam ser mais céleres, de menor investimento e maior ganho. É o caminho que serve ao Capital para solucionar aquilo que Marx chamou de tendência decrescente da taxa de lucro, em que se faz necessária a redução do tempo de circulação e a criação de subempregos apenas como viabilizadores de um mercado consumidor. Os partidos da esquerda parecem não conseguir escapar desta temporalidade do Estado e do Capital e  procuram “otimizar” sua militância, por via de atos efêmeros com algum potencial de visibilidade. Assim, a tática é entrar nas pautas midiáticas e, deste modo, exercer pressão sobre o patronato ou sobre o Estado, cujas instâncias, de tão impermeáveis, cada vez mais só são minimamente desestabilizadas quando envolvidas em escândalos que a própria burguesia queira expor. Tudo isto, portanto, desde que os grupos conservadores estejam, eles próprios, em disputa entre si. É preciso, pois, a produção de um outro tempo, no qual a esquerda não seja apenas este coadjuvante ensimesmado. Neste sentido é necessário reposicionar este sujeito da ação.
Há um princípio que me apropriarei de Badiou: o evento quem nomeia é o ator e não o espectador. Por isto defendo o partido como uma espécie de narrador, na esteira do que Lênin sugeria, ao defendê-lo como a tribuna do povo. Convocados a criar um novo tempo no aqui-e-agora, em alternativa à ação performática, e permanecendo no âmbito de uma apropriação de novos tempo-espaços, outros gêneros do próprio teatro podem nos servir de parâmetros, seja para reposicionar o tempo, seja para re-situar o ator, em uma dinâmica mais estruturada e menos auto-idêntica. Entendendo o partido como um narrador imanente, poderíamos propor uma temporalidade tal como a de um teatro épico, em que o narrador não exprime o próprio estado de alma, mas os de outros seres, participando, porém, do destino destes, sempre presente através do ato de narrar. Sua narrativa, ademais, é de uma obra de vasta extensão e sempre dialética porque aquele que conta sempre conta para alguém. Isto não dispensa, porém, aspectos do gênero dramático, que, embora apresente o mundo como autônomo ao sujeito, emancipado de formas de mediação, apoiado na identidade catártica de um encadeamento causal que inebria o espectador, possui as rubricas como mediadoras e grandes antagonismos como motor. Ainda que impedido de retornar ao passado por sua atualidade rigorosamente encadeada, o drama se apresenta repetidas vezes pela primeira vez. E aqui estamos diante das três unidades clássicas que nos ajudam a pensar o partido: ação, tempo e espaço a ressignificarem o sujeito, ou melhor, estabelecendo novos marcos na relação sujeito-objeto ou sujeito-mundo. No teatro, hoje, tem sido comum a ação assumir feições de investigação auto-referente, onde expôr tem como único referente a auto-exposição fragmentada das performances individuais, sem texto, sem estrutura, tal como happenings. A política cai na mesma armadilha, ao se resumir a eventos efêmeros, sem desdobramentos orientadores e sem algo que os anteceda como a servir de ensaios. O fantasma do stalinismo tem grande papel neste drama, pois muito do que se tem de recurso mais estruturador da ação política como algo que a estenda no tempo e no espaço é utilizado de forma tímida, pelo temor da associação com a rigidez fantasmagórica do burocratismo stalinista. A presença que se estabiliza através de uma organização e que é compelida a manter sua vitalidade precisa ainda elaborar melhor sobre seu passado. Só assim sairá de uma permanente defensiva, tal como uma esquerda constrangida.
Roberto Schwarz, em seu estudo em torno da peça de Brecht, A Santa Joana dos Matadouros, aponta para a insuficiência da explicação pelo “acidente stalinista” do desencontro histórico entre um experimentalismo de vanguarda e o socialismo. Em suas palavras “o problema já vinha de antes”. O mesmo é necessário dizer acerca das explicações para os rumos da revolução russa pelo “burocratismo stalinista” ou pela “ditadura do partido no período de Stalin” ou pela “traição de Stalin e invejas de Zinoviev”. O problema já vinha de antes. É preciso que verifiquemos com maior atenção o que era isto que antes já vinha. Caso contrário, restará a dramática impossibilidade de retornar a um passado que é, inevitavelmente, parte de nossa obra histórica.



LavraPalavra: Mas como aproximar essa categoria de evento de Badiou à crítica de uma tática que prioriza os “eventos”, ou seja, a ação performática?

Clarisse Gurgel: Talvez devêssemos partir da polêmica que se estabelece em torno do conceito entre Badiou e autores como Antônio Negri, por exemplo. Nos termos de Negri, o evento parece melhor atender ao anseio do que chamamos de evasão nirvânica. O próprio Negri serve de evasão, de uma espécie de consolo, ao sugerir potencial subjetivo nos obstáculos objetivos impostos pelo capital. Isto porque o autor, com sua aversão pós-moderna à uma tal restrição da forma, encanta-se inebriado com o papel que o avanço produtivo engendra na passagem da subsunção formal para a subsunção real. Como se, ao sair do formal para o real, estivéssemos diante da liberdade autônoma de uma vida imediata, despida de influências externas e mediadoras. Nossa crítica é à centralidade do evento, nos termos em que Negri o entende, como conformação da política ao paradigma da resistência apoiada nas experiências de movimentos antiglobalização, por exemplo. Há outras noções de evento. Em Badiou, evento está associado a um procedimento, ao modo como habitar uma situação extraordinária, não por representar um instante de existência inigualável do sujeito, mas por convocá-lo a nomeá-lo, inscrevê-lo na história. Algo que centra atenção no processo de fidelidade a um acontecimento, aquilo que lhe imprime continuidade.
Mas aí poderíamos resumir nos seguintes termos: para Negri, o evento é o ponto de chegada, para Badiou, é o ponto de partida. Acho que esta simplificação poderia mais atrapalhar que ajudar. Porque poderíamos incorrer no erro de crer que a noção de evento como resultado associa-se à ideia de acúmulo de forças, tal como um ação como excesso. Entretanto, para Negri, aquilo que forja o sujeito revolucionário é um processo aleatório de lutas, pautadas por grupos de identidades, rompendo com uma noção de organização formal, como um partido, que ele entende ser uma organização madura e completa – na esteira do equívoco de supor que falar de “forma subjetiva” é falar de um modelo de maturação. Por outro lado, a noção de evento, tal como aparece em Badiou, como ponto de partida, em que sua verdade é medida por sua duração, produz inquietações também acerca do papel de elementos relevantes para a política revolucionária como programa ou planejamento, dado que aqui o evento aparece como exceção. Este dilema entre ação como excesso ou como exceção encosta na falsa polarização entre ação espontânea e ação organizada, aquela que tem servido de esteio, muitas vezes, para a própria rejeição à forma partido. Tal debate, cuja relevância está naquilo que Lênin distinguiu entre tática-plano e tática-processo, ignora que a tarefa de organização requer plano e processo. No sentido de que os elementos de disciplina e organização partidários não são fatores que impõem necessariamente a precedência da organização, como receita, à ação espontânea, admitindo-a como fagulhas potencialmente constituidoras. O próprio Badiou sinaliza para a importância dos seres estarem expostos ao evento, organizados de modo a antecipar as surpresas, de tal maneira que possamos entender este evento, ainda que extraordinário e desconhecido, como um presente que é lastro de um passado que escoa, através dos sujeitos, para o futuro. Esta exposição com a qual o sujeito se apresenta não deixa de corresponder à consequência inevitável de seu pertencimento no movimento da história, mesmo, portanto, que seja impelido à incorporar um evento, cuja sequência concreta se deu como começo, como ruptura. O sujeito está convocado a algo, a uma operação, que já inseriu o singular no universal, no simbólico da história, pois é assim que os indivíduos fundam suas relações com o mundo. Assim, podemos compreender a articulação e a relação de co-produção entre aquilo que rompe e aquilo que possui duração. Lênin assim também entendia, quando alertava para a necessidade de renovação das forças partidárias, através da luta, da efervescência das massas, das tais fagulhas, manifestadas em publicações ilegais, na greve nacional dos ferroviários, de outubro de 1917, nas 166 manifestações das jornadas de julho, que levaram o povo para o lado dos bolcheviques, nas ocupações de latifúndios pelos camponeses, que destruíam e queimavam mansões de latifundiários, confiscando estoques de grãos e que aceleravam a insurreição.
Assim, é possível articularmos temporalidades distintas que estendem a ação na duração e garantam a ela um potencial disruptivo, em um hibridismo de gêneros, ao ponto de compreendermos até mesmo o papel do lirismo na política, aquele em que o mundo é subjetivado em momentos eternos, tal como se fez na Comuna de Paris, no dia 6 de abril, quando o 137º Batalhão da Guarda Nacional trouxe para as ruas a guilhotina e a queimou, em  meio ao entusiasmo popular.



LavraPalavra: Que tipo de lutas ou quais metodologias poderiam ser usadas para que a esquerda tome consciência do jogo performático em que esta metida e se liberte deste circuito?

Clarisse Gurgel: É de fato um circuito. E só o que interrompe um circuito é um curto-circuito, a junção de coisas, em princípio, disjuntas. Neste sentido, sigo permeando o tema da temporalidade. Há um desafio enorme em concebermos um partido que, em tempos de flexibilização das relações sociais e de trabalho e de extrema efemeridade nas trocas e nas experiências, consiga produzir uma temporalidade oposta. Isto só é possível através de uma organicidade do sujeito coletivo, razão pela qual acredito no papel do militante profissional, pois ele é quem mais pode fazer esta junção: vai, pelo tempo de seu trabalho, produzir um outro tempo no partido. Como diz nosso amigo Zizek, só um corpo orgânico pode se auto-diferenciar. E a esquerda precisa se auto-diferenciar do todo. Aqui, a noção de auto-diferenciação é interessante, pois é algo que preserva diferenciação em seu próprio interior. É possível você falar em algo que apresenta contradições em seu interior – algo que poderia sugerir um certo grau de inconsistência da coisa – sem que isto sirva de pretexto para que seu resultado seja trivial, para que se possa nomeá-lo ao bel prazer de cada um. A trivialidade é opção para aqueles que não concebem a unidade na multiplicidade, que não concebem a possibilidade da unidade na contradição. A esquerda precisa dar dois passos atrás e perceber que seu esforço agora é o de conceber tais coisas. Isto implica em tratarmos do tema da identidade partidária nos termos hegelianos: de identidade como relação. Esta noção para o partido o impele a dispor de seus espaços, de seu tempo e dos meios que estão disponíveis para o exercício difícil de mediação imanente, em que não só o conteúdo de certos termos condenados seja compartilhado e discutido entre seus filiados – centralismo democrático, disciplina partidária -, mas um programa e um projeto de sociedade sejam elaborados. Lênin sempre chamou atenção para a necessidade de atentarmos para o contexto histórico, quando impelidos a pensar a forma do partido. Não sem razão defendia em 1902, o que um pensador contemporâneo, Lars Lih, tem chamado de Erfurtianismo, em referencia a um modelo partidário vitorioso em face da repressão anti-socialista de Bismarck, na Alemanha de 1891. Era o modelo entendido por Lênin como o viável e a ser construído por um longo período, para combater a autocracia russa, um contexto de ausência extrema de liberdades políticas básicas. Na mesma direção, é preciso que se pense, com urgência, qual é o partido que queremos e qual é aquele exigido para nossa época. Os casos de golpes, expurgos, manipulações entre militantes, até pertencentes ao mesmo partido, precisam ser tratados com seriedade. Em alguns casos, a facilidade com que se expulsa um filiado é a mesma com que se filia. Este é um ponto no tema da metodologia. Casos emblemáticos, hoje, são aqueles que envolvem tensões, por exemplo, entre religião e política no interior de certos partidos. Hoje, o Brasil tem um proletariado amplamente interpelado pelas igrejas evangélicas, que, aliás, fazem um trabalho brilhante de organização de base, atividades recreativas, publicação de jornais, panfletagens de massa, jornadas de juventude, cursos e grupos de estudo. Rituais, encontros, grupos, que não se justificam por identidades propriamente, mas por uma necessidade de manter o costume dos encontros. Tais igrejas chegam a cumprir o papel do Estado, prestando serviços à comunidade, envolvendo-a em trabalhos de assistências social e até de mediador com o tráfico de drogas. Algo que nos lembra os alertas de Gramsci para a necessidade de forjarmos, já, na ordem social burguesa, as instituições que cumpririam o esforço de produzir costumes proletários, não como uma experiência de “dualidade de poder”, por exemplo, mas como sistematização prévia de uma nova forma de organização social encarregada a nós de construirmos. São formas de produção de hábitos que servem de sinais de que há um vazio por ser nomeado e que alguns o representam na figura de Deus, não só como aquele que lhe cria esperança, mas aquele que o adverte sobre o mal. Dois aspectos que apontam, de algum modo, para o futuro. Para uma vida pra além do tempo presente. Mal ou bem, a experiência das ocupações, em 2015, nas escolas em São Paulo foi um ensaio do que estou tratando aqui, pois os manifestantes fizeram as vezes do Estado, mas as vezes do avesso.
O que me encoraja a afirmar que devemos extrair algo de positivo na tendência anacrônica da religião, em especial de vertente evangélica no Brasil, é o fato de que precisamos ser justamente esta “falta contra a cronologia” que o anacronismo possui – e que bandeiras como o comunismo também possuem -, pois é aquilo que consegue ser novo e necessário fora de seu tempo. Um partido revolucionário que acredita que a religião é o ópio do povo e acolhe um evangélico entre seus quadros está diante de um ser que reivindica duas verdades, pois, tal como Marx sugeriu, a religião e o comunismo são, ambas, formas de felicidades, são corações em um mundo sem coração. Isto passa por lidar com duas sentenças verdadeiras – o comunismo e a religião como felicidades. Ainda que não reste dúvida, desde já, de que o comunismo como felicidade carregue nele mesmo uma disjunção radical com nosso próprio tempo, o tempo do capital. Mas, de todo modo, comunismo e religião são dois termos disjuntos que se juntam, em um curto-circuito, quando o desafio é a proletarização do partido, no Brasil. Foi um brasileiro, o filósofo Newton Costa, um dos primeiros a apontar para a possibilidade de dois termos que se negam não se excluírem como verdades. Disto se derivou uma série de pesquisas alternativas à lógica clássica que auxiliam até em processos decisórios, quando se está diante de dados que se contradizem. Curiosamente, o mesmo Newton Costa, ao questionar a dois alemães se sua tese tinha diálogo com o hegelianismo, deparou-se com duas sentenças distintas, uma que negava e outra que afirmava. O filósofo, estranhamente, abdicou da hipótese, diante de duas sentenças que poderiam ser verdadeiras sem se excluírem. Talvez, para um filósofo que não apreciava as trivialidades do vulgo, tal como se pode observar em algumas de suas entrevistas, o mundano tenha-lhe tirado o chão e lhe produzido um curto-circuito. Dirigirmos nossa escuta para o que os trabalhadores têm manifestado como interesse e como tábua de salvação – a religião e o gosto pelos grandes épicos religiosos traduzidos em telenovelas, por exemplo – nos produzirá, sem dúvida, curto-circuitos semelhantes.  Mas são esses os mesmos trabalhadores, cuja necessidade e precariedade os obrigam à sabedoria revolucionária de resolver coletivamente seus problemas, que terão muito a nos ensinar. Este é um dado concreto da vida na favela, por exemplo, que serve de elemento para que se rompa com o ideário do empreendedorismo – aquele que defende soluções individuais para problemas individuais, tal como o próprio presbiterianismo – e para que se compreenda que o caráter coletivo não está só nas soluções, mas nos próprios problemas dos trabalhadores, no capitalismo. É como dizia Lênin: a vida ensina. O partido precisa de vida partidária para apresentar uma alternativa de felicidade, buscando com minúcia aquela motivação que permite a junção de coisas, em princípio, disjuntas, como um evangélico em um partido comunista, e aquela que faz com que o trabalhador busque a igreja, por exemplo, e nem cogite filiar-se a um partido.



LavraPalavra: Em seu texto, você estabelece uma ligação entre a ação performática e o que chama de patologia partidária, ou seja, o desvio da forma partido de suas funções revolucionárias. Como você vê esta patologia em relação às lutas contemporâneas identitárias e por reconhecimento?  

Clarisse Gurgel: Chamo de patologia este fenômeno em que os partidos rejeitam sua própria forma. Esta adesão manifesta-se, dentre outras maneiras, na priorização da tática da ação performática, como tentativa de escapar da imagem associada ao stalinismo. Algo que repercute em uma espécie de crise subjetiva, tendo em vista que, nos marcos da ação performática, os partidos convertem a luta contra-hegemônica em luta por reconhecimento, deslocando sua crise ideológica para uma crise de identidade. Isto não só pelo caráter de suas bandeiras e pautas – centradas nas lutas por direito de expressão de sexualidade, de gênero, de raça… – mas por sua tática e estratégia serem sintetizadas no desejo por reconhecimento de sua própria identidade e de seu direito de expressão revolucionária. Tal como se estivéssemos diante de uma dinâmica funcionalista, nos marcos do que Zizek chamou de “oposição complementar”, em que a esquerda reivindica uma cota de participação nos espaços de audiência. Parafraseando Oscar Wilde, o mais corajoso dos partidos tem medo de si próprio. É duro apontar isto, mas este caráter performático da esquerda possui estreita relação com a maneira como os partidos socialistas e comunistas se nomeiam quando estão diante dos inquisidores, que, não tenho dúvida, são muitos, mas muitos deles estão no seu interior. No Brasil, nós temos partidos que se apresentam, algumas vezes, como movimento, outros que se reivindicam “partido de partidos”, aqueles que preservam o “desenvolvimento das singularidades”, outros que, em um êxtase constante diante de “situações revolucionárias”, alimentam o fetiche na clandestinidade e no centralismo. Estes últimos esquecem-se de que a tal situação revolucionária envolve a fragilidade do capital, de um lado, e a força dos socialistas, do outro. O caráter defensivo que marcou a esquerda pós-Stalinista a constrange em ações esporádicas, sem sustentação em suas bases sociais, com filiações instáveis e inorgânicas. Os problemas que minaram o PT, por exemplo, estão na origem de novos partidos socialistas que contam muito mais com filiados-simpatizantes e que se pautam por calendários eleitorais. O próprio referencial no trabalho como critério para filiação se perdeu. Uma pessoa pode se filiar a um partido socialista sem assumir qualquer compromisso com o partido. Na tentativa de romper com os estigmas da burocratização, muitos partidos atuam timidamente e crêem que basta um calendário de atos e marchas para adquirem legitimidade combativa e uma vitalidade que os afastem do fantasma de Stalin. Mas, tal como nos alerta Lacan: “o que não é reconhecido faz irrupção na consciência sob a forma de visto”. Situada entre o reconhecido e o visto, entre o antes e o depois característico do tempo performático, a esquerda encara envergonhada esta experiência especial de seu Déja-Vu. Querendo arrancar-lhe, corre atrás do próprio rabo, pois ela – como ninguém – não pode ser sem seu passado. Isto porque toda espécie de percebido comporta necessariamente uma referência a um percebido anterior. E é deste lugar de onde se é visto que se trata o campo simbólico. Ao contrário de se supor que a visibilidade pode se resumir, com êxito, ao campo do imaginário. Uma pendência urgente da esquerda é, pois, sua reconciliação com seu passado, com seu campo simbólico. Algo que inclui os seus fracassos. Este é o limite que o próprio trotskismo parece apresentar, dado seu caráter pouco propositivo e muitas vezes defensivo com a forma partido.
Com todo o respeito aos companheiros trotskistas, a situação atual nos faz lembrar debates antigos, entre junho e junho de 1905,  em que Lênin dedica-se a criticar as táticas defendidas por Trotski, na Conferência da parte menchevique do Partido Operário Social-Democrata da Rússia, que se assemelhavam, guardadas as devidas proporções – inclusive quanto ao caráter de estágios a que se propunham e que hoje nem isto possui -, àquilo que Lênin chamou de “teoria da insurreição processo” ou de “organização-processo”. Algo que se materializava na tendência dos mencheviques a perceber o processo de organização política como uma sucessão linear de atos e bandeiras. Sejam em partidos-movimentos, sejam em partidos-comitê central, este fenômeno parece ser preponderante. A ação performática foi a forma como tentamos sintetizar esta tática, em que uma radicalidade é simulada por meio de ações, em sua aparência, dispostas a gestos de desobediência e de afronta aos valores estabelecidos, mas que têm, porém, seus limites impostos pelos próprios atores, não por senso de disciplina coletiva, mas por uma estratégia de ser aceito nas pautas midiáticas. Sem prejuízo de um debate mais aprofundado sobre as reais condições de liberdade política no Brasil e no mundo, o que vemos é que, se para Lênin, nos países onde havia liberdade política, a diferença entre a organização sindical e a organização política era perfeitamente clara, esta lógica não se confirma hoje. Lênin, diante da autocracia russa, apontava para a confusão, por parte dos membros do partido, entre sindicalismo e luta revolucionária. Aqui, partidos revolucionários abdicam do debate sobre os desafios da tomada do aparelho do Estado, assumindo preponderantemente tarefas de negociações entre patrões e empregados, e os sindicatos atuam como seitas, como se fossem organismos autopoiéticos, tratando como inimigos de classe trabalhadores de sua categoria que não se enquadram perfeitamente no clube sindical de um dado grupo de “revolucionários”. Temos partidos hoje cujo sentimento-de-si é o da soma de suas particularidades e/ou de mera universalidade formal, em que alguma unidade é conhecida para além de suas particularidades. Entretanto, seja no primeiro caso, em que estaríamos diante de uma possível força sem forma, seja no segundo caso, em que uma mínima repetição, um mínimo hábito e cotidiano permitem que o partido fale em seu nome – e até mesmo fale de si como aquele capaz de dar um “fora a todos” – o que testemunhamos de fato são partidos como formas sem força. Isto muito se deve à própria ideia mecânica de unidade, como algo plenamente consistente, despido de contradições.



LavraPalavra: Como você lida com a relação entre psicanálise e marxismo em sua tese?

Clarisse Gurgel: Acho interessante contar como surgiu esta união. Tenho uma certa fissura – e o termo é curioso, pois remete a uma tentação à repetição, ao mesmo tempo que é sinônimo de corte – por telejornal, principalmente por aqueles que são veiculados por canais dedicados exclusivamente a noticiário. Espiar vez ou outra ou ouvir de fundo aquelas notícias, repetidas vezes, estruturava, de certa forma, em uma espécie de amalgama, minha rotina. Era o que me conectava com o resto da cidade. Poucas coisas naqueles noticiários mudavam. A pauta restrita que se repetia era o diapasão dos meus dias e algo que me proporcionava um estranho bem estar. Meu encontro com a psicanálise se deu aí. De um jeito bobo e vulgar. Na percepção orgânica de que há em nós uma “necessidade” de repetição e que isto estava associado a um meio de organização do tempo, do espaço e de nós mesmos. Depois, fui entender que a repetição envolvia pulsões em diálogo com uma demanda nossa de sentido. Era evidente que a esquerda era destituída de recursos de repetição capazes de produzir esse efeito estruturante do dia. Ou faziam uso de seus recursos nos marcos do “trabalho amador” – em referência a Lênin -, de forma vacilante, subestimando o potencial de combatividade de suas bases. Esta constatação nos colocava diante de, no mínimo, dois desafios. Aqueles que envolviam recurso e repetição: seus potencial estruturante e disruptivo e seus riscos, tais como o da famosa burocratização. Mais desafiador, portanto, seria conceber uma repetição que soubesse produzir o novo do mesmo. Sabia que os militantes não dispunham de tantos recursos, mas, ainda assim, repetiam de alguma forma seu modo de agir. Estávamos, desde já, cientes do potencial da repetição. Razão pela qual já perseguíamos uma ideia que passava pela articulação entre hábito e espontaneidade. Estas duas palavras aparecem em uma mesma sentença de Lênin, em Estado e Revolução. Justo quando ele está tratando do processo pelo qual o Estado se extingue. Portanto, a noção de repetição passível de ser associada a algo que fosse capaz de produção de uma espécie de impulso disruptivo, para que fosse entendida como algo que preservasse a dimensão de uma disciplina coletiva, implicava em algo distinto de um puro hábito e que implicasse em algum modo de universalização constituidora. Razão pela qual nossa hipótese de um partido que possa repetir, produzir hábito, passa por uma percepção de seu papel também como aquele que faz as vezes de Estado, de um Estado sui generis.
A articulação entre a psicanálise e política se estreitou, ainda mais, a partir destas impressões, contando com Hegel como aquele que me ajudaria a não cair em conversões grosseiras ou precipitadas. As distinções que Hegel faz acerca da repetição na dinâmica de produção de hábito, entre hábito como segunda natureza, aquilo que lhe proporciona “sentimento de si”, e hábito ético, por exemplo, são caminhos que alimentam hoje algumas hipóteses novas em desenvolvimento. E se este é nosso caminho para algo mais propositivo, nosso diagnóstico apontava para um tipo de repetição na esquerda em direção oposta, mais como expressão de uma relação dúbia, de uma tensão, com seu próprio campo simbólico. Isto, que possuía até um potencial de “relação negativa consigo mesma” poderia significar um tensionamento, na perspectiva de uma pulsão de morte, em que a negatividade expressasse o tal “ferrão de recusa”, nos termos em que Zizek sugere. Assim, talvez, estivéssemos talvez em um melhor caminho, de uma repetição produtora de uma unidade contraditória, em que o partido se forjasse na luta de classe e no enfrentamento, fraterno, amplo e coletivo, de questões internas pendentes. Entretanto, o que víamos era o contrário, a esquerda repetia uma forma de ação apoiada em representações, apoiadas, não no desenvolvimento do pensamento, mas no sentimento imediato e na imaginação contingente dos eventos, em uma forma especial de repetição que buscava audição em um outro que lhe era adverso.



LavraPalavra: A ação performática?

Clarisse Gurgel: Sim. Foi o nome que atribuí a um tipo de repetição que possuía características que nos lembravam uma repetição identificada no set psicanalítico: o Acting Out. Uma atuação que serve como representação de um recalque, um trauma que ainda não foi simbolizado e que o Outro, no caso o analista, recusou-se a ouvir. No Acting Out, o ator procura se desimplicar da atuação, busca imprimir um caráter espontâneo ao ato, de tal modo que o Outro o subjetive, de maneira que aquela ação sirva como recurso de subjetivação, de determinação daquele sujeito por via do Outro. Sou muito grata ao encontro de interesses que houve entre mim e o psicanalista Gabriel Tupinambá, pois, em certa medida, a disposição que teve o colega de percorrer comigo o trajeto que eu propunha, de articulação entre a psicanálise e o estudo da ação revolucionária, foi o que me permitiu estabelecer este paralelo, entre ação performática e Acting Out. Entretanto, sentia que havia algo neste mesmo paralelo que não se encaixava e que passava pela relação especial que a esquerda estabelecia com este Outro, com aquele que servia de endereço da ação.
Ao mesmo tempo em que os partidos faziam uso de uma tática de visibilidade dirigida à mídia de massa, combatia as grandes corporações midiáticas, negava sua presença nos atos, denunciava seus passados e seus propósitos. Ao mesmo tempo em que adotava ações que faziam parte do universo tradicional da esquerda – como deflagrações de greve, realização de assembleias – esvaziavam-nas de conteúdo efetivo, fazendo uso de tais recursos de uma maneira iconográfica, instrumental e tímida. Neste instante da investigação teórica, eu testemunhava, por exemplo, mais uma greve nacional, como as dos professores federais, em que a “greve” era uma espécie de signo atualmente referente. Quando se pensa em greve, pensa-se em algo que suspende o tempo, interrompe o curso de alguma atividade. Esta suspensão e sua indeterminação são os fatores que servem de recurso de pressão. Mas, no modo de sua condução, na realidade concreta, aquela greve já começava com sua data de término tacitamente e até verbalmente anunciada: o dia da aprovação do orçamento da União. A adesão ao movimento dava-se, muitas vezes, graças à promessa, do comando de greve a suas bases, de que se tratava de uma paralisação breve. Este é um caso perfeito de ação performática, em que o significante é adotado apenas como insígnia, um ícone, em um uso imaginário do significante. “Greve” ou “ato de radicalização”, neste caso, são imagens meramente ilustrativas, não importando as condições em que se materializam, servindo apenas como legendas, aquilo que permite à esquerda um “sentir-se-a-si-mesmo-fazendo”.
Mas, aí, nestes termos, a ação performática parecia mais uma Passagem ao Ato, outro tipo de repetição identificado na psicanálise, que, em seus marcos, é radicalmente distinta de um Acting Out. Sendo Passagem ao Ato, estaríamos tratando de uma ação que serve como substitutiva do pensamento, como se fosse uma descarga motora, sem endereço. Seriam processos primários de resolução de angústia. Este tipo de atuação aparece comumente como algo não reivindicado pelo autor, mas sim como algo por ele sofrido ou a ele forçado. A Passagem ao Ato está muito associada por algumas escolas de psicanálise a um diagnóstico de época, por elas denominadas “Império das Imagens”, em que o campo da linguagem como mediação universal perde eficácia, por um possível esgotamento das grandes narrativas, das ideologias e das instituições tradicionais, que não ofereceriam mais o que chamamos de centro de gravidade para as identificações simbólicas. Consistiria em trazer para o âmbito da relação com outros imediatos – e não mediados pela cultura – a dinâmica de um gozo. Esta seria, aliás, a semelhança entre um gozo no corpo através de quadros como bulimia e anorexia, ou de gestos como aplicação de piercings e feitura de tatuagens com a ação performática, em que a satisfação está no ato em si. Todas essas formas de atuação se apoiam na satisfação imediata do ato, no corpo, e em um papel inflacionado das imagens.



LavraPalavra: Então a ação performática chega a um impasse conceitual entre um Acting Out e uma Passagem ao Ato?

Clarisse Gurgel: Pois é. Estava diante de duas hipóteses que pareciam verdadeiras, mas que se anulavam, no campo da psicanálise. Porque, nos marcos do “Império das Imagens”, nosso conceito apontaria para a inexistência de um Grande Outro, nos marcos de um Acting Out, apontaria para sua existência – a mídia de massa, o stalinismo, o negrianismo, o revolucionarismo. Foi quando, em uma espécie de convescote entre mim, Gabriel e sua mãe, a grande pensadora Clara Tupinambá, entendemos que a confusão se dava pelo fato de os partidos, os atores, serem, ao mesmo tempo, aqueles que extraviavam a mensagem inscrita na ação – não tinham ou perdiam o endereço – e aqueles que eram extraviados, pois negavam suas próprias insígnias, utilizadas apenas como signos. Estávamos diante de um sujeito que endereçava suas demandas a um Outro assumido de soslaio e que sofria no próprio corpo as consequências de uma perda de assunção simbólica. Aquilo que aponta para um sintoma que pode ter potencial de metaforizar o partido em sujeito e objeto. Algo a ser investigado. De todo jeito, ao operar os conceitos para situarmos os atos e protestos no seio da crise da forma partido, entendemos que ali estávamos diante de uma hipótese: de que o partido revolucionário, que é convocado a extrapolar a democracia representativa, teria perdido de vista, ao mesmo tempo, sua tarefa de apresentar as demandas da classe trabalhadora, de instigar sua produção e de produzir um novo lugar, uma nova cultura a endereça-las. Assim, arriscamos afirmar que a tese do Império das Imagens, ao qual associam a Passagem ao Ato, seria, ao menos na política, mais um giro estratégico do sujeito do que propriamente um diagnóstico de época. Hipótese que acaba, de sobra, por produzir consequências, talvez, para o próprio campo da psicanálise e para a própria clínica, dado que a hipótese do gozo no corpo não apontaria, necessariamente, para um declínio da função paterna, mas para um recurso tático desse sujeito que anseia sem esperança.



LavraPalavra: O divisionismo e o sectarismo no interior da esquerda também aparecem como uma profunda causa de angústia, principalmente nas bases menos orgânicas dos partidos políticos. Suas investigações permitem alguma hipótese sobre esse fenômeno?


Clarisse Gurguel: Parece que sectarismo é justamente o nome desta confusão entre Acting Out e Passagem ao Ato. É o que cabe a uma esquerda que faz uso de seu vocabulário como mera imagem ilustrativa e que, em uma busca egológica em perseverar na existência, mutila-se, em ações com fim em si mesmas, esvaziadas de conteúdo, em que os outros são encarados como intrusos e o Grande Outro – o stalinismo, a burocratização, o partido, a grande mídia – é denegado, como objetos causa do desejo e como abjetos. A simulação de assembleias como espaços verdadeiros de debates, em que militantes fazem uso de informes para exaurir os adversários e expulsá-los dos plenários, a realização de greves com datas de validades, as aparições esporádicas dos militantes apenas em momentos eleitorais de aparelhos sindicais revelam esta esquerda como sujeito e objeto deste contexto de perda de eficácia do campo da linguagem como mediação. Algo que situa a esquerda como algo à mercê e a serviço de uma força centrífuga, condenando-se a uma forma que rejeita sua própria forma e que fraciona-se em pequenos arremedos de unidades supostamente auto-idênticas, em correntes, amarradas em uma espécie de conatus mesquinho. É preciso entender que, hoje, dotados dos meios de comunicação que temos, uma das tarefas é a de recuperação de relações mais face-a-face, mais dialógicas. Neste sentido é que falo do partido como mediador-imanente. Aqueles que rejeitam qualquer forma de mediação, reivindicando as redes virtuais, são justamente aqueles que centram esperanças apenas nos meios que, cada vez mais, “iconogravam a linguagem”, abdicando de uma luta bem mais trabalhosa que é de alargamento do tempo e do espaço para debates longos, em que polêmicas e diferenças são realmente enfrentadas com ternura e amadurecidas por senso de responsabilidade. Só assim, a esquerda sairá de sua posição de somente poder compartilhar o que não quer – uma esquerda anti-capitalista – para se tornar uma esquerda capaz de dizer o que quer, capaz de oferecer um convite a uma senda para um mundo mais feliz. Mas, na contramão disto, avançam nos meios sindicais, por exemplo, práticas que abolem assembleias gerais e que resumem o processo decisório da política a votações em urnas itinerantes. São espaços e concepções que perdemos para setores conservadores, em grande medida pelas práticas que adotamos. O que a esquerda perdeu entre si foi justamente aquilo que Marx apontou como o desencaixe da tríade reivindicada pelos burgueses revolucionários. Sem fraternidade, a igualdade e liberdade são plenamente subsumidas na dinâmica capitalista. Talvez isto explique a separação que alguns da esquerda concebem entre socialismo e liberdade. Falta fraternidade entre nós. E é esta fraternidade entre os militantes que nos permitirá a retomada de debates mais consequentes, a produção de hábitos como ensaios e a elaboração de um programa que nos oriente. Isto porque o que estamos propondo é que pensemos uma ferramenta que produza novos hábitos na esquerda e a partir da esquerda. Algo que passa pela produção de uma vida partidária, de criação de núcleos ativos, em locais de trabalho e de moradia, de realização de encontros e debates longos, de articulação e reativação de associações de moradores, de panfletagens amplas e constantes, de visitas a unidades para círculos de bate-papo. É pela ausência de vida partidária que se tornam comuns episódios de intolerância e autoritarismo no interior dos partidos da esquerda, mesmo, ou talvez principalmente, naqueles que mais reivindicam a pluralidade. A ideia de produção de um hábito que resulte em produção de uma outra temporalidade não diz respeito apenas à tarefa de formação política com uma dinâmica que torne os princípios revolucionários cada vez mais espontâneos para os trabalhadores. Trata-se de uma tarefa, além disto, de formação dos próprios militantes já filiados que, pelo desafio que proponho, é convocado a ensaiar tarefas de sustentação de instituições que terão como metas futuras sua extinção ou sua profunda transformação. Este é um grande desafio tal como se provou na experiência soviética.



(será a ITTAPA uma ação performática? quem viver, verá...)



Nenhum comentário:

Postar um comentário