Neoliberalismo, assexualidade e desejo de morte
Filósofo italiano aponta: obsessão pelo sucesso individual e troca dos contatos corpóreos pelos digitais podem realizar distopia da humanidade insensível, para a qual já alertava Pasolini
Franco Berardi, entrevistado por Juan Íñigo Ibáñez | Tradução: Inês Castilho e Simone Paz
Uma das metáforas mais potentes – e de maior ressonância até nossos dias – no imaginário de Pier Paolo Pasolini é a de “mutação antropológica”. Trata-se de uma expressão que o cineasta, escritor e poeta italiano utilizava para ilustrar os efeitos psicossociais produzidos pela transição de uma economia de origem agrária e industrial para outra, de corte capitalista e transnacional.
Durante os anos 1970, Pasolini identificou, em seus livros Escritos Corsários e Cartas Luteranas, uma verdadeira transmutação nas sensibilidades de amplos setores da sociedade italiana, em consequência do “novo fascismo” imposto pela globalização. Acreditava que esse processo estava criando – fundamentalmente por meio do influxo semiótico da publicidade e da televisão – uma nova “espécie” de jovens burgueses, que chamou de “os sem futuro”: jovens com uma acentuada “tendência à infelicidade”, com pouca ou nenhuma raiz cultural ou territorial, e que estavam assimilando, sem muita distinção de classe, os valores, a estética e o estilo de vida promovidos pelos novos “tempos do consumo”.
Quarenta anos depois, outro inquieto intelectual de Bolonha – o filósofo e teórico dos meios de comunicação Franco “Bifo” Berardi – acha que o sombrio diagnóstico de Pasolini tornou-se profético, diante da situação de “precariedade existencial” e aumento de transtornos mentais que as mudanças neoliberais provocaram.
Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), o suicídio é hoje a segunda causa de morte entre jovens e crianças – a grande maioria do sexo masculino – entre 10 e 24 anos. Do mesmo modo, a depressão – patologia emocional mais presente no comportamento suicida – será em 2020 a segunda forma de incapacidade mais recorrente no mundo.
Berardi acredita que esses dados – assim como a maioria dos atos violentos produzidos nos últimos anos, os assassinatos em massa ou os atentados suicidas radicais – estão estreitamente vinculados às condições de hipercompetição, subsalário e exclusão promovidos pelo ethos neoliberal. Sugere que ao analisar os efeitos que a economia de mercado tem em nossas vidas, devemos também incorporar um elemento novo e transcendente: o modo como os fluxos informativos acelerados a que estamos expostos por meio das “novas tecnologias” influem em nossa sensibilidade e processos cognitivos.
Esclarecimento: Berardi não é nenhum tecnófobo ou romântico dos tempos do capitalismo pré-industrial. Compreende – e utilizou a seu favor – os avanços que a tecnologia introduz em nossas vidas.
Desde o final dos anos 1960, liderou diversos projetos de comunicação alternativa, tais como a revista cultural A/traverso, a Rádio Alice (uma das primeiras emissoras livres da Europa), a TV Orfeu (a primeira televisão comunitária da Itália). Participou de programas educativos da Rádio e Televisão Italiana (RAI) ligados ao funcionamento e efeitos das novas tecnologias. Além disso, “Bifo” foi um observador atento de fenômenos contraculturais como o ciberpunk, ou as possibilidades futuras de governos tecnofascistas.
Sua carreira foi fortemente marcada pelo compromisso político. Foi membro ativo – desde a Universidade de Bolonha, onde graduou-se em Estética – da revolta de Maio de 68. No início dos anos 70, esteve vinculado ao movimento de esquerda extraparlamentar “Poder Operário”. Posteriormente – no começo dos 80, durante seu exílio na França – frequentou Michel Foucault e trabalhou junto com Félix Guattari no campo disciplinar então nascente da esquisoanálise. Berardi é autor de mais de vinte livros, entre os quais destacam-se El Alma del Trabajo: desde lá alienación a la autonomia (A alma do trabalho: da alienação à autonomia), Generación post-alfa. Patologías e imaginarios en el semiocapitalismo (Geração pós-alfa. Patologias e imaginários no semiocapitalismo), Héroes: asesinato de masa y suicidio (Heróis: assassinato de massa e suicídio) e Fenomenología del fin (Fenomenologia do fim). Segue a entrevista.
Em seus últimos trabalhos, você disse que o efeito das tecnologias digitais, a mediatização das relação de comunicação e as condições de vida que o capitalismo financeiro produz estão estreitamente vinculados ao crescimento das patologias da esfera afetivo- emocional, assim como de suicídios em nível mundial. Disse inclusive que estamos diante de uma verdadeira “mutação antropológica” da sensibilidade. De que maneira esses fenômenos estão relacionados ao aumento de suicídios e de patologias psíquicas?
Trata-se naturalmente de um processo muito complicado que não pode ser reduzido a linhas de determinação simples. A combinação dessas condições técnicas, sociais, comunicacionais pode produzir – e de fato produz, em um grande número de casos – uma condição de individualização competitiva e de isolamento psíquico que provoca uma extrema fragilidade, a qual se manifesta às vezes como predisposição ao suicídio.
Não pode ser acaso o fato de que nos últimos quarenta anos o suicídio tenha crescido enormemente (em particular entre os jovens). Segundo a Organização Mundial de Saúde, trata-se de um aumento de 60%. É enorme. Trata-se de um dado impressionante, que precisa ser explicado em termos psicológicos e também em termos sociais. Quando li pela primeira vez essa informação, me perguntei: o que aconteceu nos últimos 40 anos? A resposta é clara. Ocorreram duas coisas. A primeira foi que Margaret Thatcher declarou que a sociedade não existe, que só há indivíduos e empresas em permanente competição – em guerra permanente, digo eu. A segunda é que, nas ultimas décadas, a relação entre os corpos se fez cada vez mais rara, enquanto a relação entre sujeitos sociais perdia a corporeidade, mas não a comunicação. O intercâmbio comunicacional tornou-se puramente funcional, econômico, competitivo. O neoliberalismo foi, em minha opinião, um incentivo maciço ao suicídio. O neoliberalismo – mais a mediatização das relações sociais – produziu um efeito de fragilização psíquica e de agressividade econômica claramente perigosa e no limite do suicídio.
Qual o sentido profundo do que disse Margareth Thatcher?
Quando Margareth Thatcher disse que não se pode definir nada nem ninguém como sociedade, que só há indivíduos e empresas que lutam por seu proveito, para o sucesso econômico competitivo, declarou algo com enorme potência destrutiva. O neoliberalismo, a meu ver, produz um efeito de destruição radical do humano. A ditadura financeira de nossa época é o produto da desertificação neoliberal. A financeirização da economia é fundada sobre uma dupla abstração. O capitalismo sempre se fundou sobre a abstração do valor de troca (abstração que esquece e anula o caráter útil e concreto do produto). Mas a valorização financeira não precisa passar pela produção útil. O capitalista industrial, para acumular capital, tem de produzir objetos – automóveis, petróleo, óculos, edifícios. Já o capital financeiro não precisa produzir nada. A acumulação do capital financeiro não se faz por meio de um produto concreto, mas tão somente através da manipulação virtual do próprio dinheiro.
Nesse cenário, que peculiaridades você observa nas formas como nos relacionamos com nosso trabalho – diferentemente, por exemplo, do caso de um trabalhador industrial dos anos 70 –, que nos deixa tão expostos à saturação patológica expressa em seus livros?
O movimento dos trabalhadores do século passado tinha como objetivo principal a redução do tempo de trabalho, a emancipação do tempo de vida. A precarização e o empobrecimento produzido pela ditadura neoliberal produziram um efeito paradoxal. A tecnologia reduz o tempo de trabalho necessário, mas o capital codifica o tempo liberado como parado e o sanciona, reduzindo a vida das pessoas a uma condição de miséria material. Em consequência, as pessoas jovens são continuamente obrigadas a buscar um emprego que não podem encontrar, a não ser em condições de precariedade e subsalário. O efeito emocional é ansiedade, depressão e paralisia do desejo. A condição precária transforma os outros em inimigos potenciais, em competidores.
Você tem analisado com regularidade as formas como as tecnologias da comunicação e o uso que delas fazemos interagem com as condições de vida instauradas pelo capitalismo. Qual papel pensa que cumprem as redes sociais, no marco de uma sociedade com um tipo de capitalismo altamente desregulado? De que maneira os efeitos que esse sistema econômico produz em nossas vidas são complementares ou se relacionam com o uso que fazemos desse tipo de plataformas digitais?
As redes sociais são, ao mesmo tempo, uma expansão enorme – virtualmente infinita – do campo de estimulação, uma aceleração do ritmo do desejo e, ao mesmo tempo, uma frustração contínua, uma protelação infinita do prazer erótico, embora nos últimos anos tenham sido criadas redes sociais que têm como função direta o convite sexual. Não creio que as redes (nem a tecnologia em geral) possam ser consideradas como causa da deserotização do campo social, mas creio que as redes funcionam no interior de um campo social deserotizado, de tal maneira que confirmam continuamente a frustração, enquanto reproduzem, ampliam e aceleram o ritmo da estimulação.
É interessante considerar o seguinte dado: no Japão, 30% dos jovens entre 18 e 34 anos não tiveram nenhuma experiência sexual, e tampouco desejam tê-la. Por sua vez, David Spiegelhalter, professor da Universidade de Cambridge, escreveu em Sex by Numbers que a frequência dos encontros sexuais foi reduzida a quase metade, nos últimos vinte anos. As causas? Estresse, digitalização do tempo de atenção, ansiedade. Isso produziu o surgimento do que, para Spiegelhalter, é a “single society” [sociedade solteira], quer dizer, uma sociedade associal, na qual os indivíduos estão por demais ocupados em buscar trabalho e relacionar-se digitalmente para encontrar corpos eróticos com os quais se relacionar.
Nesta mesma linha de análise, você também disse que as formas de relacionamento com as novas tecnologias afetam os paradigmas do humanismo racionalista clássico, em particular nossa capacidade de pensar criticamente. Considerando isso, de que maneira as dinâmicas multitasking [tarefas simultâneas], ou abertura de janelas de atenção hipertextuais podem chegar a deformar as formas sequenciais de elaboração mental?
A comunicação alfabética possui um ritmo que permite ao cérebro uma recepção lenta, sequencial, reversível. São estas as condições da crítica, que a modernidade considera condição essencial da democracia e da racionalidade. Porém, o que significa “crítica”? No sentido etimológico, crítica é a capacidade de distinguir, particularmente, de diferenciar entre a verdade e a falsidade das afirmações. Quando o ritmo da afirmação é acelerado, a possibilidade de interpretação crítica das afirmações reduz-se a um ponto de aniquilamento. McLuhan escreveu que quando a simultaneidade substitui a sequencialidade — ou seja, quando a afirmação se acelera sem limites — a mente perde sua capacidade de discriminação crítica, passando daquela condição a uma neomitológica.
Apesar do déficit comunicacional ao qual muitos especialistas atribuíram a derrota de Hillary Clinton e, concretamente, à sua postura ante o estilo confrontador e “politicamente incorreto” que Trump utilizou para enfrentar temas vinculados com as guerras culturais, esta “redução da capacidade crítica” que você identifica influenciou no resultado das eleições?
Nos últimos meses tem se falado muito da comunicação da pós-verdade no contexto das eleições nos Estados Unidos, que levaram um racista a ganhar a presidência. Porém, eu não acredito que o problema verdadeiro esteja no circuito da comunicação. A mentira sempre foi normal dentro da comunicação política. O verdadeiro problema é que as mentes individuais e coletivas perderam sua capacidade de discriminação crítica, de autonomia psíquica e política.
Embora alguns especialistas reduzam a importância do termo “nativos digitais” (dizendo que não passa de uma metáfora que fala mais do poder desproporcional que cedemos às novas tecnologias do que dos efeitos reais que estas têm sobre os indivíduos), o conceito guarda uma significativa relação com a “mutação antropológica” que você identifica nos jovens da primeira geração conectiva. Que valor você atribui ao conceito de “nativos digitais” e como pode se relacionar com a noção criada por Marshall McLuhan de “gerações pós-alfabéticas” que você tem retomado em alguns de seus livros?
Em absoluto, não creio que a expressão “nativo digital” seja meramente metafórica. Pelo contrário, trata-se de uma definição capaz de nomear a mutação cognitiva contemporânea. A primeira geração conectiva, aquela que aprendeu mais palavras por meio de uma máquina do que pela voz da mãe, encontra-se numa condição verdadeiramente nova, sem precedentes na história do ser humano. É uma geração que perdeu a capacidade de valorização afetiva da comunicação, e que se vê obrigada a elaborar os fluxos semióticos em condições de isolamento e de concorrência. Em seu livro L’ordine simbolico della madre (A ordem simbólica da mãe), a filósofa italiana Luisa Muraro argumenta que a relação entre significante e significado é garantida pela presença física e afetiva da mãe.
O sentido de uma palavra não se aprende de maneira funcional, mas afetiva. Eu sei que uma palavra possui um sentido — e que o mundo como significante possui um sentido — porque a relação afetiva com o corpo de minha mãe me introduz à interpretação como um ato essencialmente afetivo. Quando a presença afetiva da mãe torna-se rara, o mundo perde calor semiótico, e a interpretação fica cada vez mais funcional, frígida. Naturalmente, aqui não me refiro à mãe biológica, nem à função materna tradicional, familiar. Estou falando do corpo que fala, estou falando da voz. Pode ser a voz do tio, da avó ou de um amigo. A voz de um ser humano é a única forma de garantir de maneira afetiva a consistência semântica do mundo. A rarefação da voz transforma a interpretação num ato puramente econômico, funcional e combinatório.
Em seu livro A linguagem e a morte – um seminário sobre o lugar da negatividade, Giorgio Agamben diz que a voz é aquilo que vincula o corpo (a boca, a garganta, os pulmões, o sexo) ao sentido. Se substituirmos a voz por uma tela, o sentido erótico, afetivo e concreto do mundo se desvanece e ficamos sós, trêmulos e desprovidos da garantia de que o mundo seja algo carnalmente concreto. O mundo torna-se puramente fantasmal, matemático, frio.
Em seu livro Heróis, você se concentra no crescente fenômeno de suicídios a nível mundial e relaciona-o com os crimes de massas que presenciamos no final dos anos 1990 — como os massacres em Columbine ou Virginia Tech — até chegar a episódios recentes, como o do piloto suicida da Germanwings, ou o atentado no Bataclan. O que a história de vida dos agressores destes crimes te diz das condições existenciais nos tempos do capitalismo financeiro? De que forma esses episódios nos falam do espírito de nossos tempos?
Acredito que a financeirização é essencialmente o suicídio da humanidade. Em todos os níveis: a devastação do meio ambiente, a devastação psíquica, o empobrecimento, a privatização, provocam medo do futuro e depressão. Basicamente, a acumulação financeira alimenta-se por meio da destruição daquilo que foi a produção industrial no passado. Como pode o capital investido ser incrementado nos tempos do capitalismo financeiro? Somente através da destruição de alguma coisa. Destruindo a escola você incrementa o capital financeiro. Destruindo um hospital, incrementa-se o capital financeiro. Destruindo a Grécia, incrementa-se o capital do Deutsche Bank. É um suicidio, não no sentido metafórico, mas no material.
Nesse cenário, não me parece tão incompreensível que os jovens se suicidem numa situação similar. Além disso, a impotência política que o capitalismo financeiro produz, a impotência social e a precariedade, impulsa jovens desesperados a atuarem numa forma que parece (e que de fato é) ser o único jeito de obter algo: matando pessoas casualmente e matando a si mesmos. Trata-se da única ação eficaz, porque matando obtemos vingança, e matando obtemos a libertação do inferno que o capitalismo financeiro tem produzido.
Pouco tempo atrás, em junho de 2016, um jovem palestino chamado Mohammed Nasser Tarayah, de 17 anos, matou uma menina judia de 13 anos com uma faca e, posteriormente, foi assassinado de maneira previsível por um soldado israelense. Antes de sair de sua casa para ir matar — e se matar — escreveu em seu Facebook: “A morte é um direito, e eu reivindico esse direito”.
São palavras horríveis, porém, muito significativas. Significam que a morte lhe parecia a única forma de se libertar do inferno da violência israelense e da humilhação de sua condição de oprimido.
A nível mundial, a taxa de homens que se suicida é quatro vezes maior que a de mulheres que incorrem na mesma prática, embora segundo a OMS, elas tentem em mais ocasiões. Da mesma forma, não temos visto casos de assassinatos em massa realizados por mulheres. Ao que você atribui que tanto os suicídios, como os crimes de massas, sejam protagonizados quase exclusivamente por homens? De que forma o capitalismo os compele a reproduzirem tais níveis de impotência, violência e autodestruição?
A violência competitiva, a ansiedade que essa violência implica, é uma translação de uma ansiedade sexual que é unicamente masculina. As mulheres são vítimas da violência financeira, bem como da vingança masculina e terrorista contra a violência financeira. A cultura feminista pode considerar-se a única forma cultural e existencial que poderia criar lugares psíquicos e físicos de autonomia frente à agressão econômica e à agressão terrorista suicida. Porém, hoje, quando falamos de suicídio, cabe ressaltar que não estamos falando do velho suicídio romântico, que significava um desespero amoroso, uma tentativa de vingança de amor, um excesso de pulsão erótica. Falamos de um suicídio frio, de uma tentativa de fugir da depressão e da frustração.
Para finalizar, poderia nos falar de possíveis práticas que proponham soluções, ou das potencialidades que você enxerga nesta geração pós-alfabética? Em seu livro Heróis você retoma o interessante conceito de “caosmose”, criado por Félix Guattari, o qual supõe um tipo de instância estético-ética de superação que daria sentido ao contexto de super-estimulação e precariedade existencial que você vê em nossos tempos…
Guattari falava de “espasmo caósmico” para entender uma condição de sofrimento e de caos mental que pode ser solucionada somente através da criação de uma nova condição social, de uma nova relação entre o corpo individual, o corpo cósmico e o corpo dos demais. Somente a libertação da condição capitalista, somente a libertação da escravidão laboral precária, e somente a libertação da concorrência generalizada, poderia abrir um horizonte pós-suicida.
Porém, a afirmação política dos nacionalistas racistas “trumpistas”, em quase todos os países do mundo, me faz pensar que estamos cada vez mais longe de uma possibilidade similar, e que, aos poucos, estamos nos aproximando do suicídio final da humanidade. Eu sinto muito, mas, neste momento, não vejo uma perspectiva de caosmose, somente uma de espasmo final. Mas isso é o que eu consigo entender, e está claro que meu entendimento é muito parcial.
(comentário no blog por Ricardo Cavalcanti-Schiel :
Para quem eventualmente se interessou pelo trabalho de Bifo, a partir dessa entrevista, e pensa em ir buscar outras fontes bibliográficas, creio que vale uma observação a respeito das mal citadas referências às suas obras (este artigo é a tradução da entrevista realizada no Centro Cultural Tlatelolco e publicada no caderno “Confabulario” do jornal El Universal, do México).
O único livro de Bifo publicado em português é “A fábrica da infelicidade: trabalho cognitivo e crise da new economy” (originalmente de 2001), publicado pela DP&A, do Rio, em 2005.
O artigo “Cognição e sensibilidade no hipermundo” foi publicado na revista eletrônica Rizoma, no número temático “Neuropolítica”, de 2002 (disponível na Internet), onde também foi publicada a tradução do prólogo da edição em espanhol do livro anteriormente citado.
Além da tradução de “La fabbrica dell’infelicità”, foi também publicado em espanhol “Generación post-alfa. Patologías e imaginarios en el semiocapitalismo”, pela editora Tinta Limón, de Buenos Aires, em 2007. Trata-se de uma coletânea de textos esparsos e traduzidos, articulados a partir do tema das “bifurcações”. Atualmente ela pode ser baixada pela Internet.
A mesma editora Tinta Limón publicou em 2009 uma coletânea de textos de Bifo, Toni Negri, Michael Hardt, Suely Rolnik, Arturo Escobar e outros, sob o título “Conversaciones en El Impasse. Dilemas Políticos del Presente”.
Ultimamente, vários trabalhos de Bifo tem sido publicados em inglês por uma editora de Los Angeles, a Semiotext(e). É o caso de trabalhos inéditos mesmo em italiano, como “The Soul at Work: from Alienation to Autonomy” (2009), “The Uprising: On Poetry and Finance” (2012) e “And: Phenomenology of the end” (2015).
Uma coletânea de textos seus, traduzidos para o inglês, foi publicada pela AK Press (Oakland, Edinburgh) em 2011 com o título “After the Future”.
“Heroes. Suicidio e omicidi di massa” foi publicado em 2015 em italiano e em inglês (“Heroes: Mass Murder and Suicide”. Londres: Verso).)
ACRESCENTO OUTRO TEXTO (ENTREVISTA) COM OUTRO ITALIANO, COM UMA POSIÇÃO MAIS OTIMISTA PRA FAZER UM CONTRAPONTO DE REFERÊNCIAS (ITTAPA)
ENTREVISTA COM DOMENICO DE MASI
A Desorientação é o maior mal do nosso tempo"
ENTREVISTA COM DOMENICO DE MASI
A Desorientação é o maior mal do nosso tempo"
by Celso Masson
Professor de sociologia na Universidade La Sapienza, em Roma, o italiano Domenico de Masi, 79 anos, ficou conhecido pelo conceito de “ócio criativo”, em que trabalho, aprendizado e prazer se combinam para gerar desenvolvimento econômico com justiça social. Seu mais recente livro, “Alfabeto da Sociedade Desorientada” (Objetiva), que chega ao Brasil esta semana, procura traduzir o que ele chama de “rota da aventura humana pós-industrial”: um caminho que a humanidade vem percorrendo sem uma referência sociológica que substitua as ideologias e crenças tradicionais que serviram como reguladoras das relações sociais. Nesta entrevista a ISTOÉ, ele afirma que a sociedade se tornou incapaz de distinguir “o que é belo e o que é feio, o que é verdadeiro e o que é falso, o que é bom e o que é ruim, o que é direita e o que é esquerda e até o que é vivo e o que é morto”. Diz ainda que a inteligência artificial poderá resolver problemas incompreendidos pelo ser humano e faz comparações entre a Itália da operação Mãos Limpas e o Brasil da Lava Jato.
Para que serve o “Alfabeto da sociedade desorientada”?
Talvez o mundo em que vivemos hoje não seja o melhor dos mundos possíveis mas, com certeza, é o melhor dos mundos que já existiram. A sociedade atual atingiu uma longevidade acentuada, um número altíssimo de países democráticos, uma ampla globalização e uma tecnologia extremamente útil no que diz respeito às necessidades humanas. Contudo, por uma série de motivos que analisei em meu livro anterior, “O futuro chegou” (Casa da Palavra), falta à sociedade atual modelo sociológico como referência. Por isso, ela é incapaz de distinguir o que é belo e o que é feio, o que é verdadeiro e o que é falso, o que é bom e o que é ruim, o que é direita e o que é esquerda e até o que é vivo e o que é morto. Eu vou dedicar essa parte final da minha vida e dos meus estudos a tentar entender qual é a meta e qual é a rota dessa aventura humana pós-industrial. Daí a necessidade de explorar, com uma série de “acupunturas sociológicas”, alguns aspectos significativos da nossa sociedade. Neste livro exploro vinte e seis.
A desorientação é um mal do nosso tempo?
É o maior mal do nosso tempo porque torna impossível o que é necessário e nos impede de fazer escolhas precisas em um mundo que nos obriga a escolher com determinação. Quando nos encontramos na frente de algo que é necessário, mas impossível, estamos na presença do trágico. Como dizia Sêneca: “Nenhum vento é a favor do marinheiro que não sabe onde querer ir”.
Em qual direção devemos seguir?
Durante os duzentos anos da sociedade industrial (1750-1950) cultivamos valores como racionalidade, velocidade, eficácia, padronização, consumismo, machismo. Com o advento da sociedade pós-industrial vieram à tona valores como a criatividade, a subjetividade, a ética, a estética, a desestruturação do tempo e do espaço, a androginia, a qualidade de vida…
Tratam-se de transformações positivas, não?
Somos capazes de antecipar algumas previsões bastante precisas sobre o futuro próximo e algumas delas são muito gratificantes. O século 21 será marcado por transformações que nos induzem a sermos otimistas: a engenharia genética, por meio da qual derrotaremos muitas doenças; a inteligência artificial, com a qual substituiremos muito trabalho intelectual; as nanotecnologias, que farão objetos se relacionar entre eles e conosco; as impressoras 3D, com as quais poderemos construir muitos objetos em casa. A inteligência artificial poderá resolver problemas incompreensíveis para o ser humano. E, graças à informática afetiva, os robôs serão dotados de empatia.
De que forma isso nos afetará?
Nos próximos anos, o conceito de privacidade tenderá a desaparecer. Será quase impossível esquecer, se perder, se entediar, se isolar.
O senhor se refere a Oscar Niemeyer como um “gênio”. Por quê?
Uma longa amizade de mais de 20 anos com o Oscar Niemeyer me dá a certeza de que nenhum dos gênios que conheci pessoalmente possui tantos dotes juntos. Ele era um homem bom e intransigente. A sua filosofia de vida era toda resumida em alguns princípios inflexíveis. “Procuro usar a minha fama para fazer com que as ideias avancem” ou “Sou aberto às emoções que vêm de fora, ao espetáculo da beleza: o por do sol no mar, a floresta tropical úmida e generosa, a luminosidade do céu, as mulheres”. Tudo ao seu redor era de uma simplicidade que ultrapassava os limites de uma espécie de pobreza franciscana universal. No que diz respeito à arquitetura, seus princípios eram igualmente claros: “O que conta não é a arquitetura mas a vida, os amigos, a família e esse mundo injusto que temos que modificar”. Eu agradeço ao Niemeyer pela infinita alegria que suas obras sempre me deram, pelo exemplo de generosidade e de coragem política, pelas inesquecíveis horas que passei por vinte anos, comovido, na esfera mágica da sua amizade. E pelo grande presente que me deu: o projeto do Auditorium de Ravello.
Falando em injustiça, existe algum meio de equalizar os desequilíbrios sociais das diferentes regiões do planeta?
O nosso planeta produz uma riqueza que cresce no total de 3 a 4% ao ano. Ela não vem distribuída igualmente, e sim conflui em um decrescente número de patrimônios. Hoje, as oito pessoas mais ricas do mundo, segundo a revista “Forbes”, possuem uma riqueza igual àquela da metade mais pobre da população mundial, algo como 3,6 bilhões de pessoas. Dez anos atrás esses privilegiados eram 385. Então, ao invés de se distribuir, a riqueza se concentra. A renda do mundo já passa os 65 trilhões de dólares. Segundo um relatório da ONU sobre o Desenvolvimento Humano, bastariam 100 bilhões de dólares a cada ano para acabar com a fome no planeta.
O ócio é um de seus temas favoritos. O senhor acredita que o trabalho se tornará obsoleto em breve?
Em 2030, a ação conjunta de máquinas eletromecânicas e digitais reforçadas pela inteligência artificial possibilitará a produção de muito mais bens e mais serviços com muito menos trabalho humano. Nos países desenvolvidos, 20% dos empregados desempenharão tarefas operárias, 30% desempenharão tarefas administrativas e 50% atividades criativas. Quem desempenha um trabalho criativo, enquanto trabalha produzindo riqueza, aprende produzindo conhecimento e se diverte produzindo bem-estar. Em outras palavras, faz aquilo que eu chamo de ócio criativo.
O Brasil está em vias de aprovar mudanças sobre a idade mínima para a aposentadoria. Qual a sua opinião?
Está errado estabelecer uma única idade para todos os tipos de trabalho. Com a única palavra “trabalho” nós nos referimos a atividades profundamente diferentes. Vamos supor que um mineiro trabalhe, um metalúrgico trabalhe, um bancário trabalhe, um cientista trabalhe, um artista trabalhe, um empresário trabalhe, um poeta trabalhe. Efetivamente se tratam de atividades muito diferentes entre si e diversamente desgastantes. Os trabalhos fisicamente pesados necessitam de repouso frequente e deveriam prever uma aposentadoria muito precoce. Para os trabalhos criativos não existe horário nem aposentadoria. O grande escritor Conrad dizia: “Como posso explicar à minha mulher que quando estou olhando pela janela, estou trabalhando?”
Como avalia a operação Lava Jato, que guarda semelhanças com a italiana Mãos Limpas?
A operação Mãos Limpas, na Itália, eliminou uma classe dirigente inteira, muito corrupta. Mas na falta de uma nova classe dirigente jovem e honesta, capaz de tomar o lugar da velha, o poder foi conquistado por Silvio Berlusconi, proprietário de um grande império televisivo que soube manipular as massas e ocupar a posição de liderança. Após vinte anos de “ditadura soft e mediática”, a Itália revelou uma nova forma de corrupção, menos centralizada, mas mais difusa em níveis de governos locais. Espero que não aconteça a mesma coisa ao Brasil e que, uma vez debelada juridicamente, a corrupção não se espalhe como metástases por todos os poderes periféricos.
E se ela se espalhar?
Por 30 anos, o Brasil cresceu muito mais rapidamente que a Itália. Hoje ocupa o sétimo lugar na classificação elaborada com base no PIB. A Itália ocupa o oitavo. Ambos os países necessitam readquirir a auto-estima e mirar um futuro baseado no crescimento harmônico, na eliminação radical da corrupção e da violência e na redução da distância entre ricos e pobres. O Brasil, dizia Tom Jobim, “não é um país para principiantes”. Eu desejo a esse grande país, pelo qual eu nutro uma profunda admiração, que ele saiba apresentar uma classe dirigente que possa levá-lo rapidamente para fora da atual crise.
O que explica o recente avanço do populismo de direita nos Estados Unidos e na Europa?
A nossa sociedade pós-industrial nasceu no Ocidente, graças ao empurrão dado pela globalização, do progresso tecnológico, das mídias, mas sem ter um pensamento concluído, um paradigma, um modelo teórico no qual construir a sua própria estrutura. Da sociedade industrial ela herdou três grandes ideologias: a cristã, a liberal e a marxista. A teoria marxista não evoluiu em um “neomarxismo” capaz de elaborar um modelo social alternativo ao neoliberalismo. As massas não encontraram vanguardas de esquerda capazes de oferecer um objetivo, uma organização e alianças confiáveis. Hoje, se colocam à disposição de líderes populistas cada vez mais sem escrúpulos. Assim nasceu a presidência de Donald Trump que, sem ser nem fascista e nem nazista, possui todos os pressupostos antropológicos.
O que pode dizer sobre as propostas de construir novos muros separando povos e nações?
Na natureza humana lutam dois impulsos profundos: agressividade e solidariedade. A agressividade produz estresse, insatisfação, instinto destrutivo. A solidariedade permite o crescimento harmonioso, uníssono. O Brasil representa um admirável exemplo de solidariedade realizada através de dezenas de etnias que convivem em uma relativa paz social. No decorrer de 500 anos, o Brasil só combateu uma guerra (com o Paraguai), enquanto na Europa todos os países desencadearam dezenas de guerras sangrentas contra todos os seus países vizinhos. Criar muros é uma coisa profundamente estúpida pois cada muro, mais cedo ou mais tarde, é destinado a cair.